Três folhas
Por Clóvis Nicacio
Aniversários não deveriam ser
dias tristes e solitários. Aquele amanheceu como qualquer outro. Nada de
diferente no sol, no vento, na rua ou até onde conseguia enxergar dentro do quartinho
pequeno. O pai saiu para trabalhar antes mesmo da escuridão desaparecer. Sem o
ronco dele, o silêncio só não se instalou aterrador por causa dos piados dos
passarinhos lá fora. Mas o menino sentia, mais do que via, uma diferença.
Depois dessa data estaria oficialmente com 12 anos.
Desde que a mãe morreu, há
dois anos, achava que nunca mais saberia o que era um aniversário. Ela sabia.
Dizia que o melhor aniversário era quando se podia escolher o presente. Ainda
se lembrava de quando o deixou escolher um bolo, e a mãe conseguiu arranjar um
pedaço, Deus sabe como. Mães sempre conseguem tudo.
Sozinho no quarto, permaneceu
deitado. Num sábado sem aula e sem missa de domingo, levantar mais tarde era um
presente que podia escolher. Pena que não era folga para o pai. Já devia estar
trabalhando na gráfica, do outro lado da cidade. Depois do trabalho normal,
completaria o dia fazendo horas extras, como em todos os sábados depois que
ficou viúvo. Mas no dia seguinte iriam juntos para a missa.
Morar no subúrbio tem suas
vantagens e desvantagens. A Igreja na mesma rua era bom, mesmo com o barulho
dos sinos, mas a gráfica ficava longe. O pai só voltaria quando estivesse
escuro novamente.
Só viu o presente quando se
levantou. Três folhas de papel sobre a mesa, ao lado de um toco de lápis.
Branquíssimas, como se tivessem sido feitas das penas tiradas das asas de um
anjo. Só podiam ser uma surpresa deixada pelo pai. Quer dizer que ele se
lembrou!
Ler e escrever eram as únicas
diversões possíveis, para um menino vivendo sozinho com o pai. Ficava horas no
porão, todos os dias, lendo e relendo tudo o que conseguia pôr as mãos. Livros,
revistas, jornais velhos. Adorava a Bíblia, por ser o livro maior. Quando tinha
algum papel, escrevia, inventando personagens, mudando as histórias, criando
aventuras. A mãe havia ensinado a sempre melhorar, se aperfeiçoar a cada
parágrafo, assimilando o que outros haviam feito. Essa vida eremita o afastava
das outras crianças, fossem da escola ou da igreja. Era visto como um
esquisito, branquelo, magérrimo, um antissocial sem amigos. Só o Padre e o pai
o apoiavam, depois que a mãe se foi. Ela o chamava de futuro escritor.
Não havia pedido aquele
presente, mas adorou. Sentou-se, pegou uma das folhas e começou:
“Hoje é meu aniversário de 12 anos. Não tenho amigos
para comemorar comigo. Deve ser melhor assim, já que eu não saberia o que
fazer. Se pudesse escolher, pediria um bichinho. Não, para compensar todos os
outros aniversários, seria melhor um bichão. Queria ter um leão, igual aqueles
dos romanos. Eu seria respeitado por todos os outros garotos.”
Estava contemplando a folha, pensando
no que mais poderia encaixar, quando um enorme barulho fez a casa estremecer. Tão
alto como se viesse de dentro da casa. Correu para fora do quarto, curioso e
assustado. A porta da sala, a que dava para a rua, continuava fechada. Para o
outro lado, na direção da cozinha, não havia porta, mostrando que o cômodo
anexo estava vazio. Só restava o banheiro e o porão. Caminhou alguns passos,
atento a qualquer novo ruído, até a porta do porão. Só ouvia o próprio coração,
disparado. Até os passarinhos haviam se calado. Ao olhar para baixo, viu dois
reflexos lá no fundo, iguais aos olhos de um animal o encarando. Prestando
atenção, viu a juba do enorme felino delineada pela pouca iluminação. Conseguiu
fechar a porta no momento exato em que o animal disparou em sua direção,
emitindo um novo rugido ensurdecedor. Ouviu poderosos arranhões no lado de
dentro da porta, depois do leão conseguir subir pela escada estreita. O peito
estava quase explodindo.
Não conseguia entender como um
bicho daqueles estava no porão. O pai jamais deixaria um animal selvagem de
presente, sem avisar nada. A não ser que... Será possível?
Voltou correndo para o quarto.
As folhas continuavam sobre a mesa. Amassou aquela usada, jogou no lixo, pegou
outra em branco e escreveu:
“Hoje é meu aniversário de 12 anos. Não tenho amigos
para comemorar comigo. Seria muito bom se tivesse pelo menos um, alguém
corajoso que me ensine a domar leões. Como o Daniel da Bíblia, aquele que ficou
vários dias entre as feras, sem sofrer nenhum arranhão. ”
Deitou a folha na mesa. Ficou
ouvindo, atento. Os arranhões na madeira cessaram. Mais alguns minutos e
escutou batidas na porta. Podia ser algum vizinho incomodado pelo barulho. Foi
para a sala.
As batidas não vinham da porta
da rua, mas da que fechava o porão. Sem os rugidos e arranhões conseguiu juntar
coragem suficiente para abrir a porta e olhar para dentro, com o coração disparado
de novo.
Um rapaz com roupas estranhas
o encarava, ainda mais assustado do que ele.
— Onde estou? É isto o
inferno?
— Não, é só o porão da minha
casa. Já domou o leão?
— Que leão? Que castigo é esse
que me aplicas?
— Você é o Daniel, não é? O
que foi atirado na cova dos leões e foi protegido por Deus.
— Esse é meu nome, mas nada
sei do que falas. Fui condenado à cova dos leões pelo Rei Dario, mas quando
fecharam a tampa da cova me encontrei nesse lugar estranho.
— Foi um engano da minha parte.
Sei como consertar. Não saia daí. E não tema os leões, eles não farão nada com
você. Deus não vai deixar.
Fechou a porta e correu para o
quarto. Amassou a segunda folha, atirando-a para o lixo, para junto da
primeira. Pegou a terceira, escrevendo com dedos trêmulos.
“Hoje é meu aniversário de 12 anos. É um dia
especial quando posso escolher meu presente. O dia de confessar e pedir perdão
pelos meus erros. Perdão por não ter feito amigos. Pelas minhas escolhas
erradas. Prometo que vou ouvir conselhos. Que não farei manhas, mas não sei se
consigo evitar chorar. Vou cumprir minhas penitências, todas elas. Posso ter
meus cabelos revirados, vou rir junto quando receber cócegas, vou obedecer sem
questionar. Para fazer tudo isso, só o que peço é passar esse dia com minha
mãe.
“
Dobrou a folha cuidadosamente,
guardando-a dentro da Bíblia. Depois desceu correndo para o porão, com os olhos
embotados e o peito perto de explodir, tentando não tropeçar nas lágrimas.
As folhas não foram um
presente do pai.