terça-feira, 4 de abril de 2017

As cinco esposas de Nathan

Parte um — Nathan

Capítulo 1 – Sigma Um


A dor era tão intensa que nem a sentia mais. Exceto quando os buracos do caminho chacoalhavam o carro e balançavam minha perna. Eu continuava concentrado, tentando chegar ao hospital onde esperava resolver aquilo. Nunca imaginei que teria aquele desfecho.
Consegui dirigir até a entrada do Pronto Socorro, onde um manobrista veio me socorrer. Na verdade, ele pretendia apenas pegar o carro e leva-lo para alguma vaga subterrânea, ficando surpreso quando pedi uma cadeira de rodas, das várias que estavam ali. Não devia ser muito comum um motorista solitário fazer aquela troca de veículos.
A dor me deu mais uma fisgada vigorosa, quando usei as mãos para levantar a prótese e puxa-la, junto com a parte da perna que me pertencia, para fora do carro. Assim que sentei na cadeira de rodas, levantei a perna da calça folgada que usava e tirei a prótese, ali mesmo na presença do manobrista, procurando por algum alívio. Meu carro era adaptado. Consegui me abaixar e subir o pedal basculante do acelerador esquerdo, para que não fosse confundido com uma embreagem. Devo ter feito uma expressão de dor considerável, para fazer o rapaz esquecer do carro e me levar para dentro. Segui abraçado ao meu pé postiço. Foi o rapaz quem retirou uma senha e me estacionou na porta da sala de espera, antes de retornar para estacionar o carro.
Notei uma agradável queda repentina na temperatura, quando começou a chover. Mais uma daquelas tradicionais chuvas paulistanas inesperadas, que alagavam tudo, menos as represas, vazias em 2015.
Não sentia a dor se não me mexesse. Foi rápido. Logo o número da minha senha preferencial acendeu no painel. Quando acenei, um atendente contornou o balcão e veio me buscar. Preenchemos a ficha com meus dados pessoais e do meu plano de saúde. Quando perguntado sobre o que estava sentindo, tentei ser o mais explicito possível.
— Estou com um abcesso subcutâneo no joelho direito, inflamado e com muita dor.
Acho que ele entendeu as duas últimas palavras. Tentei ajudar mais um pouco:
— Se for possível, gostaria de ser atendido por um dermatologista.
— Senhor, aqui é um Pronto Socorro. Não temos dermatologistas. Vou encaminhar o senhor para nosso ortopedista de plantão.
Eu não podia esperar nada diferente numa tarde de sábado, chuvosa naquele momento. Completada a ficha, fiz menção de pilotar a cadeira de volta para a sala de espera. O atendente não deixou. Pediu que esperasse, enquanto chamava uma enfermeira para me conduzir até o consultório do ortopedista. Gostei dessa eficiência.
Depois dela empurrar a cadeira, comigo sentado, por dois corredores, chegamos à sala do médico. Um rapaz novo, com pouco mais de 20 anos, cabelos curtos escuros, sentado atrás da tela do computador. Ele só me viu quando a enfermeira já me ajudava a subir na maca. Levantou-se e veio na minha direção, pegando a prancheta oferecida pela moça.
— Senhor Nathanael, o que posso fazer pelo senhor?
Eu pensava que o motivo da minha visita estivesse naquela ficha, que ele mal olhou. Repeti o que eu sabia, com mais alguns detalhes:
— Doutor, é este abcesso no joelho. É o terceiro que tenho em dez anos. Preciso que o senhor faça uma punção e retire a sujeira interna, para que isso desapareça.
— Está mesmo muito inflamado e inchado. A vermelhidão está enorme.
— Sim, Doutor. E dói demais. Está bem no local onde a prótese se apoia. Não consigo andar por causa da dor.
— Imagino. Mas não posso mexer nisso sem antes saber a extensão. Essa inflamação não vai pegar anestesia. Vou pedir um ultrassom e um Raio X, para avaliar.
Eu sempre soube que existem 3 tipos de médicos.
O primeiro tipo eu chamo de "Médico dos filmes". É aquele doutor que vem na sua casa quando você tem uma dor de barriga, consulta a família toda, conversa sobre o futebol do fim de semana, te receita um vidro de xarope e está sempre disponível, bastando um telefonema. Só existe nos filmes.
O segundo tipo é o "Médico do trabalho". O que zela pela boa saúde do trabalho, não das pessoas. Existe dentro das empresas que são obrigadas por lei a manter um Departamento Médico, onde são feitos os exames periódicos. Uma vez por ano, você é obrigado a comparecer ao consultório, para que o médico veja que você foi e te dispense, atestando "apto para o trabalho", apenas porque viu você entrar andando.
Aquele médico que estava me atendendo é do terceiro tipo, um "Médico do Plano de Saúde".  Deve ter sido a única coisa que ele leu na ficha, além do meu nome. Para este tipo, não importa qual a dor do paciente, desde que tenha um bom plano, para cobrir todos os exames e consultas solicitadas. Ele não quer que você morra, mas também não quer que se cure, pois em ambos os casos terá um cliente a menos. Vai ficar pedindo todos os tipos de exames e retornos, eternamente. Penso que a evolução disso será Cartões de Fidelidade, onde cada 10 consultas pagas darão direito ao Doente Preferencial de ganhar uma grátis, desde que todas ocorram dentro de um ano.
Retruquei que não precisava de Raios X, já que meu abcesso era subcutâneo, não chegando até o osso. E questionei se o Ultrassom poderia mostrar o pus que havia por baixo da pele.  Nas vezes anteriores bastou um pequeno corte com o bisturi para drenar o pus, eliminar a causa da inflamação, fazendo o inchaço regredir e em dois dias o corte estava cicatrizado.
O doutor do plano de saúde me ignorou. Voltou para trás do computador, aparentemente para preencher as guias dos exames. Foi neste momento que minha vida mudou radicalmente. Até então não sabia que podia existir um quarto tipo de médicos.
A porta do consultório foi aberta bruscamente, permitindo a entrada de uma doutora com curtíssimos cabelos loiro platinados, quase incolores, vestindo um avental branco e segurando algo que parecia um tubinho de batom. Enquanto fechava a porta, ela falou autoritariamente:
— Pode deixar, Doutor. Esse paciente é meu!
O médico parecia tão surpreso quanto eu:
— Mas quem é a senhora?
— Sou a Cirurgiã Chefe. Eu assumo daqui.
Ela se aproximou do estupefato doutor, como se fosse exibir uma credencial, levantou o braço e borrifou alguma coisa no rosto dele, usando aquilo que parecia um batom. Como se tivesse muita pratica nessa operação, segurou o homem antes que desabasse e o pousou delicadamente sobre a mesa, como se segurasse um boneco de pano. Depois se virou para mim.
— Agora somos só nos dois, querido. Vim eliminar todas as suas dores. O que está te incomodando?
— O que fez com ele?
— Só o coloquei para dormir. É uma anestesia leve. Vai acordar em meia hora e não se lembrará dos últimos minutos. É importante que ninguém saiba da minha presença. Me garante que não vai comentar sobre isto com ninguém?
— Não estou entendendo nada. Eu sou o paciente e o médico é anestesiado por meia hora?
— É o tempo que preciso. Sua ficha diz que você entrou com dores e saiu completamente normal. Qual a dor que vou curar?
— Como posso ter saído se estou aqui?
— É o que está registrado na ficha. Sei que esse nosso primeiro encontro é difícil para nós dois, mas a palavra-chave é tempo. Por favor, não vamos desperdiça-lo. Me diga onde está doendo e depois nossa conversa será mais fácil.
— Devia estar na ficha. É esse abcesso no meu joelho.
Ela se aproximou, permitindo que eu a visse melhor. Quase não consegui. Minha atenção foi desviada para a boca mais perfeita que jamais vi.  Uma obra prima esculpida num rosto, com o tamanho dos lábios, cor, espessura, posição, tudo nas medidas mais perfeitas. Ela não usava batom, provavelmente por saber que qualquer coisa artificial estragaria a perfeição. Senti um desejo irresistível de beijar aquela boca. O que me conteve foi a dor quando ela tocou meu joelho. Gemi, sem saber se era provocado pela dor ou pelo desejo. Ela tirou a mão.
— Desculpe. Há muito tempo não via um abcesso subcutâneo, tão inflamado e inchado. E num local tão apropriado. Vou resolver isso já.
Ela desabotoou o avental, revelando estar usando um collant por baixo, extremamente branco. Parecia ser de um tecido especial, com consistência de pano, mas com brilho de plástico. Levou a mão até um cinto compartimentalizado, como se fosse o BatCinto do Batman. Retirou mais dois tubinhos, semelhantes a tubos de batom.
Borrifou as duas mãos, uma por vez. O spray solidificou imediatamente, mudando de cor, criando uma camada bege gelatinosa. Eu nem sabia que existiam luvas cirúrgicas liquidas.
O segundo tubinho foi borrifado no meu joelho. Imediatamente a dor desapareceu, assim como qualquer sensibilidade. Era como se eu não tivesse o resto da perna, abaixo do joelho. Anestesia local realmente eficiente e instantânea.
Ela guardou aqueles dois tubinhos e pegou dois outros objetos no BatCinto. Me lembraram um Palm, um aparelho precursor dos smartphones. Tinha uma tela retangular, cobrindo praticamente toda a extensão do aparelho, com uns 8 por 10 centímetros. O segundo objeto devia ser o stick, uma canetinha metálica para escrever na tela vítrea do Palm. Errei nas duas suposições.
Ela ligou o aparelho com a tela, escaneando meu joelho.  Mesmo vendo de longe e sem ângulo entendi que era um Raios X portátil. Ela podia ver desde os meus ossos até o tecido que provocava a inflamação. Pegou a canetinha e iniciou a cirurgia. Era um bisturi laser. O raio vermelho penetrou meu músculo até o osso, cortando tudo pelo caminho, manuseado por mãos experientes. Fora o espanto, eu não sentia nada. O corte foi de uns dez centímetros, expondo o osso. Sem uma gota de sangue sequer.
— Doutora, o que houve com o sangue?
— Sou uma médica militar, leciono cirurgias de emergência em campos de batalha. Devo recuperar soldados que praticamente já perderam todo o sangue que podiam. Esta técnica foi desenvolvida para evitar desperdício.
— É isso que significa esse símbolo gravado na sua roupa? Seu posto?
— Sempre observador, querido. Sim, Sigma identifica o Departamento Médico da nossa Força. O número um indica que comando esse departamento. Sou a Sigma Um.
Enquanto falava, ela pegou outro tubo no cinto e borrifou o corte. Foi como um jato de espuma de barbear, que solidificou imediatamente. Com cuidado, a espuma foi retirada junto com os tecidos comprometidos e o pus solidificado. Mais alguns cortes, guiados pelo aparelhinho, outras borrifadas da espuma e tudo parecia limpo e rosado.
A espuma contaminada foi guardada num envelope plástico, para descarte posterior. Pensei que havia acabado quando a doutora pegou algo semelhante a uma embalagem de preservativo e abriu-a com o laser. Dentro havia uma pequena pastilha quadrada de um centímetro de lado por um milímetro de espessura. Com muito cuidado ela colou a pastilha no osso da minha perna, antes de reverter alguma coisa no bisturi. Um raio laser, desta vez na cor verde, foi usado para fechar o corte de dentro para fora, eliminando qualquer cicatriz ou inchaço. Não resisti:
— O que tem nessa pastilha, Doutora?
— O motivo da minha presença aqui. Vai eliminar qualquer dor que você possa ter, por vários anos. Isso é um segredo militar dos mais importantes. Ninguém pode saber que você tem essa pastilha, ou que fui eu quem a colocou. Nunca comente nada disso, ou nossas vidas estarão em perigo. Posso contar com você, meu bem?
— Sim, mas qual o propósito disso?
— Você saberá, no devido tempo. Agora, tire suas roupas.
— O quê?
— Vamos, não perca tempo. Só tenho mais dezoito minutos.
Ela falava sério. Lentamente, comecei a desabotoar minha camisa. É um procedimento normal num checkup, eu pensava. Ela observava, atenta e divertida.
— Nunca imaginei você se recusando a tirar as roupas para mim. Enquanto faz isso, preciso te contar sobre nosso próximo encontro. Você estará trabalhando para a ONU. Estude tudo o que puder sobre táticas de guerra, é importante. E vai conhecer mais uma de nós. É a criatura mais doce e adorável que pode existir, mas para você ela pode ser um pouco, como dizer... intimidadora. Ela é muito sensível. Cuidado para não dizer nada que possa ofendê-la.
— Por que eu ofenderia alguém?
— A aparência dela, para quem não a conhece. Ela é completamente azul, da cabeça aos pés. Os pelos pubianos são azul cobalto, sua cor preferida.
— Isso não existe. Agradeço seus cuidados, Doutora, mas o que está me dizendo não faz o menor sentido. Onde isso vai acontecer?
— Não se preocupe com isso, meu bem. Nós sabemos onde você estará. Outra coisa sobre ela, que você pode estranhar: ela tem quatro braços.
— Agora você vai dizer que é uma alienígena e que veio me abduzir.
— Não, meu amor. Sou tão terráquea quanto você. A pergunta que você não fez é quando será nosso próximo encontro. Esteja preparado, será daqui a 78 anos.
— Você é do futuro!
— Não conte para ninguém. Já que você não pediu, eu peço: quero um beijo!
Sem me dar chance de reação, ela se atirou contra meu pescoço e me roubou um beijo de língua, com aqueles deliciosos lábios perfeitos. Me soltou rapidamente, enquanto eu tentava estabilizar minha pulsação e meus pensamentos. Estava sorrindo, enquanto me encarava:
— Beijo amador. Compreensível, já que você ainda está solteiro.
Eu claramente estava sendo provocado. E claramente estava perdido.
— Doutora, você sempre trata seus pacientes dessa forma?
— Não, amor. Só existe um homem que eu trato assim. O meu marido!
Ela levantou o braço e o tubinho agiu novamente, lançando o anestésico no meu rosto. 
Apaguei.