domingo, 18 de março de 2018

Os almas negras - Parte 1


Os almas negras – Parte 1



Por Clóvis Nicacio

A mulher corria desesperada pelo beco, tropeçando em tudo o que não via, se chocando contra paredes e objetos abandonados. Talvez tivessem sido deixados de propósito, apenas para servirem de obstáculos. A vontade de chorar voltou, mesmo ela não tendo esse direito. Não apenas por estar com os olhos cobertos por uma dúzia de bandagens, completamente cega, mas porque guerreiras amazonas não choram, nem mesmo quando abandonadas. Nem sequer sentia o ferimento na cabeça, como se aquilo tivesse se curado sozinho.
O conhecido cheiro dos cavalos indicava que a estrebaria estava perto. Pelo menos, era o beco certo. Precisava encontrar um meio de selar um e seguir os outros guerreiros, antes que o barulho soasse longe demais. Era difícil acreditar que a Princesa partiu sem ao menos se despedir. Mesmo sem poder ver, ela ainda poderia ser útil de alguma forma.
Ouviu passos rápidos se aproximando do beco. As duas últimas semanas na completa escuridão haviam aprimorado os outros sentidos. Não apenas o olfato estava mais aguçado, guiando-a até os cavalos, mas também a audição que a fez perceber a partida da Princesa e dos guerreiros. O tato auxiliava no controle da lança, usada como um cajado, evitando que se arrebentasse contra tudo, embora não impedisse os tropeços e trombadas.
Reconheceu ter chegado na estrebaria quando ouviu a respiração familiar dos cavalos. Se concentrou para lembrar onde estavam as selas, quando os passos do perseguidor no beco se aceleraram. Não havia tempo para preparar nenhuma fuga. Os cavalos teriam que esperar.
Sem o dom da visão, lutar com a lança seria inadequado. Havia perdido a espada durante a batalha, quando foi ferida. Quebrou a arma no meio, atirando-a contra um joelho. Duas barras menores eram mais fáceis de manusear. Prestando atenção ao barulho dos passos, se posicionou onde imaginou ser a lateral da porta e aguardou a chegada do perseguidor. Teria uma chance se ouvisse a respiração do inimigo. Nunca mais seria uma presa fácil para qualquer uork.
Quando o oponente se aproximou o suficiente, ela desferiu um golpe de cima para baixo, usando a ponta cega da lança. Enquanto ele se defendia, projetou a outra metade, a da ponta afiada, como se fosse uma espada, tentando atingi-lo diretamente no peito. O agressor devia conhecer as técnicas de luta das amazonas, pois conseguiu se defender dos dois golpes e ainda arrancou a arma pontiaguda da mão dela. Ailim ainda teria outra chance se transformasse a meia lança restante em uma nova arma. A saída seria uma luta corpo-a-corpo, negando ao perseguidor a oportunidade de usar a lança roubada. Tinha que assumir o risco. Se jogou para frente, tentando golpear as pernas do oponente, apenas para se chocar contra um corpo enorme e ser detida por dois braços fortes. Aturdida pela falta de agressividade do inimigo, ouviu o homem dizer:
— Ailim, pare! Sou eu, Ofan.
— Ofan? Graças aos deuses. Me ajude.
A guerreira aceitou o abraço, retribuindo-o, procurando algum conforto no peitoral gelado da armadura do homem. Ofan era um dos dois outros guerreiros, formadores da escolta pessoal da Princesa, junto dela mesma. Rapidamente se recuperou, tentando esconder o momento de fraqueza:
— Ofan, temos que ir! Rápido! Precisamos alcançá-la. Posso escutá-los se distanciando cada vez mais. Não temos tempo a perder.
— Sim, Ailim, nós vamos ao encontro dela. Mas não será agora.
— O que está dizendo?
— A Princesa Shanya conversou comigo antes de partir e me deu novas ordens. Eu estava te procurando. Não te achei na estalagem e deduzi que este fosse o único lugar para onde você iria. Devo cuidar de você até se recuperar por completo. Depois iremos encontrá-la no castelo.
— No castelo? Então, ela encontrou um meio de recuperar o trono?
— Sim, mas ainda temos algum tempo até que toda a operação esteja pronta. A menos que aconteça algum milagre. 
— Precisamos ajudá-la! Posso me recuperar enquanto cavalgamos.
Estavam no povoado mais próximo do castelo, onde haviam chegado há duas semanas. Os inimigos que os emboscaram foram derrotados pelo grupo de guerreiros seguidores da Princesa, com a ajuda dos dois novos protetores e das Amazonas. Mas a líder das mulheres guerreiras foi uma das baixas, gravemente ferida na cabeça.
— Não, Ailim, é muito perigoso. O caminho está infestado de uorks. Temos que esperar até que o poder da Princesa se manifeste, para nos guiar.
— Mais um motivo para protegê-la! Não tente me afastar dela, Ofan.
Amazonas têm uma percepção mais aguçada do que outros guerreiros, obtida no treinamento para entender até os cavalos, com os quais formam uma ligação profunda, cada um dependendo do outro. Ailim detectou uma ansiedade no coração do amigo e companheiro de batalha.
— Ofan, você está me escondendo algo. Posso sentir. Por que a Princesa conversou com você e nem se despediu de mim, se ainda sou a líder das Amazonas?
Ofan estava desconfortável por esconder o que realmente acontecia, mas fora alertado por Shanya para revelar a verdade só no momento adequado. Ele e Thael haviam se juntado à tropa há apenas um mês, e gozavam da total confiança da Princesa, tendo sido imediatamente incorporados na restrita escolta particular. Ambos sabiam dos comentários circulando entre os outros guerreiros, estranhando toda aquela camaradagem, por desconhecerem a amizade dos três desde longa data. Somente guerreiros com muitas vitórias em batalha conquistavam o direito de cavalgar ao lado da Princesa, junto da líder das amazonas.
— Ela sabe que você precisa de pelo menos mais um dia. Se não soubesse, não seria a princesa. E não se despediu por absoluta falta de tempo. As coisas estão acontecendo muito rápido.
— Que coisas? Só estou afastada por duas semanas.
— Vamos conversar depois. No momento tem algo mais urgente. Me deixe tirar essas bandagens dos seus olhos.
— Está louco, Ofan? Não quero ficar cega para sempre! Preciso destas bandagens. Você sabe que o martelo do uork afetou meus nervos ópticos.
— Claro que sei. E hoje concordei com Shanya quando ela mencionou que esse ferimento pode ter um propósito.
Algumas coisas não devem ser ditas até que chegue o momento certo. A tensão entre os dois antecipava esse momento.
Ailim, Shanya, Ofan e Thael estavam no grupo de vanguarda que chegou ao povoado, quando foram emboscados e isolados por um grupo de uorks. No ápice da batalha, Ailim sofreu um golpe lateral na cabeça, aplicado pelo martelo de guerra de um uork. A luta terminou para Shanya, no instante em que ela viu Ailim caída no chão, com o elmo rachado e a cabeça toda ensanguentada. Ofan e Thael, até então empenhados em proteger Shanya, praticamente encerraram a batalha sozinhos, finalizando todo o pelotão uork daquele lado do povoado, enquanto a Princesa socorria Ailim. A amazona não podia ver, mas desde que foi ferida os três se revezavam tentando curá-la. E Ofan se culpava por estar protegendo a pessoa errada.
— Você está misterioso demais. Do que está falando? Faz dois anos que eu a acompanho para todos os lugares, desde que o trono caiu, e ela nunca me confidenciou nada.
— Vou te contar o que sei enquanto tiro as bandagens. Por favor, não me impeça.
Delicadamente o guerreiro soltou a ponta da primeira tira de tecido, enrolando-a na mão. Falava vagarosamente.
— Shanya partiu para ajudar Thael. Ele foi feito prisioneiro hoje. Neste momento está a caminho das masmorras do castelo.
Ailim se agitou.
— O quê? Ouviu o que disse? Com Thael preso e nós dois aqui, a Princesa está sozinha! Ela precisa de nós!
— Ailim, pode me ouvir? Shanya sabe o que está fazendo. Ela sempre soube. E nunca estará sozinha. Tem sessenta dos melhores guerreiros ao lado dela, tem as fiéis Amazonas que você treinou e todo o reino a segue. A missão dela é recuperar o trono. Assim como a de Thael é proteger o Rei, neste momento aprisionado nas masmorras do castelo. A prisão de Thael foi proposital, para ele poder se infiltrar.
— Isso é loucura. Esse é o plano? Ele será levado desarmado para uma masmorra recheada de guardas. O que pode fazer lá?
— Thael não precisa levar armas. Ele já é uma. Quando libertar o Rei, Shanya e os nossos o estarão esperando. Os três vão retomar o trono. Nós chegaremos depois.
— E quanto a nós, não faremos nada enquanto nossos amigos loucos resolvem tudo?
— Minha missão é outra. O que você sabe da profecia?
— Ora, sei tudo o que todos os kandorianos sabem.
— Eu vim das montanhas, das terras altas. Sei que existe a profecia, mas só ouvi trechos. Não sou kandoriano. Pode recitá-la para mim?
 — “Quando estiver completa, a princesa conhecerá o poder que revelará os ocultos e trará a paz definitiva.”
— Agora entendo o que Shanya quis dizer. Tudo faz sentido.
— Ofan, pare de mistérios. O que faz sentido?
— O que é que torna os uorks tão perigosos, além da maldade e da ganância?
— Qualquer criança sabe. A capacidade deles de se misturarem com as pessoas, sem que ninguém perceba. Se infiltram em qualquer lugar.
— Exato, mas eles têm um ponto fraco. Possuem almas negras.
— Isso não ajuda muito.
— Explica a profecia. Eles são os ocultos. A paz definitiva será alcançada quando puderem ser identificados. Esse é o poder que será revelado para a princesa.
— Ainda falta decifrar o que é a princesa completa. Não me parece que falte alguma coisa em Shanya.
— Isso faz parte do que ela me explicou hoje, antes de partir. Se os uorks tivessem conseguido decifrar da maneira certa, não teriam mantido o Rei vivo na masmorra. Justifica a urgência de enviar Thael para resgatá-lo. Com a morte do Rei, a herdeira se tornaria Rainha e a profecia nunca se cumpriria. Uma Princesa completa precisa de um reino, de um Rei e do direito de ser a sucessora. Pelas leis de Kandor, a herdeira ganha esse direito com a maioridade.
— Então é verdade. Shanya faz aniversário esta semana.
— Quase isso.
Os dedos de Ofan chegaram nos cabelos dela, mantidos sedosos mesmo com a presença dos tecidos por duas semanas, bem escovados a cada troca de curativos. A última bandagem foi retirada com delicadeza redobrada, como se ele estivesse cuidando de uma joia preciosa.
— Abra os olhos, Ailim. Considere isto como o meu presente.
Novamente, a percepção de Ailim dizia que alguma coisa além do normal estava acontecendo. Uma sensação parecida como quando o calor dos primeiros raios do sol surge para quebrar o frio da madrugada. Ela soltou o pedaço de lança que ainda segurava, e levou as duas mãos ao rosto, tocando de leve as mãos de Ofan. O contato teve o poder de tranquilizá-la. Inexplicavelmente, ela confiava no amigo.
— Presente? Acho que você enlouqueceu. Presente de que?
Ofan se afastou alguns passos, lhe dando espaço. Sempre atento.
— De aniversário. Hoje você completa dezoito anos. Shanya me contou.
A surpresa fez com que a guerreira abrisse os olhos instintivamente. As pupilas verdes se contraíram, assustadas. No início, a pouca luz da estrebaria não a incomodou muito, mas, mesmo assim, cobriu os olhos com as mãos. Vagarosamente se atreveu a observar onde estava, trocando os outros sentidos pela visão. Via tudo borrado, aos poucos conseguindo separar algumas imagens enfumaçadas. Na direção da porta, reconheceu a luz do sol do lado de fora, como uma mancha mais clara do que todo o resto. Nas paredes, conseguiu discernir vagamente os contornos das selas, arreios e ferramentas pendurados. Os cavalos nas cocheiras eram vultos enormes. Seriam assustadores se ela não os conhecesse tão bem.
Antes de completar um giro, outra percepção lhe chamou a atenção. Havia uma segunda fonte de luz, na direção oposta da porta, tão brilhante quanto o sol. Ela se virou para ver o que era.
Desde que chegou, Ofan sempre foi considerado por ela e por todas as amazonas, como um homem muito atraente. Um guerreiro montanhês alto, forte, musculoso, com olhos que transmitem uma calma interior contagiante. Neste momento ela não via nada disso. Uma aura brilhante cercava todo o corpo dele, como se o amigo estivesse coberto de pequenas chamas brancas, projetando-se através da armadura. A visão fantasmagórica transmitia uma sensação de paz inexplicável. A parte mais incrível eram as enormes asas luminescentes, dobradas, nas costas do guerreiro.
O choque daquela visão inesperada, o esforço da fuga pelo beco, o princípio de luta e a fraqueza das últimas semanas se aliaram, se transformando num cansaço irresistível. Ailim sentiu os olhos se fechando antes de desmaiar.
Ofan a segurou antes que caísse e a aconchegou carinhosamente contra o peito. Não gostava de ter provocado a inconsciência nela, mas era necessário para completar a cura. Levantou-a no colo como se ela não tivesse peso, falando baixinho:
— Você nunca mais cairá, Princesa. Não permitirei.
Deu alguns passos na direção da porta, enquanto transformava as asas de energia pura em matéria, para abri-las num salto ágil e alçou voo, desaparecendo no céu com a protegida desacordada nos braços.

Continua na parte 2. 

Você está convidado a opinar sobre este trabalho. Gosta, não gosta, quer sugerir alguma coisa? Estou aqui para te ouvir. Só assim poderei contar histórias melhores.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Trecho de março - O sequestro

Retornando a divulgação de um trecho por mês, segue outra cena de "Giulia Denich e o assassino noturno", um novo nome que estou planejando para a história do vampiro de Guarulhos.
É um trecho de terror leve, para os desavisados. O livro continua sendo escrito, para lançamento em breve.



Quem leu algum dos meus livros já publicados, por favor, passa lá na Amazon e deixa uma avaliação.
Também aceito curtidas na página do Facebook ou na do Instagram.

https://www.facebook.com/ClovisNic
https://www.instagram.com/clovisnicacio2358

Segue o trecho:



O sequestro

Noites de sábado são especiais. As pessoas estão desesperadas para se libertarem, como se o mundo fosse acabar no domingo, sempre deixando a horrível impressão de recomeçar pior na segunda. Vale tudo para tentar mostrar a ilusão de continuar vivo: festas de aniversário, de casamento, cinemas, restaurantes, barzinhos, baladas, ou qualquer lugar que tenha uma fila para entrar.
Existem aqueles que estão alijados disso tudo, como se o mundo nunca tivesse começado. Seja por falta de dinheiro ou por falta de emprego, sinônimos para a mesma inexistência de vida. Em alguns casos por falta de opção. Gê sempre esteve numa dessas três alternativas.
Nos últimos meses, com Ducarmo viva, o sábado era a noite dela faturar, pegando incautos com algum dinheiro, no puteiro. Ele sempre ficou de fora, aproveitando para fazer horas extras quando estava empregado, como aconteceu nos últimos seis meses trabalhando no posto de gasolina. Em todos os lugares, era sempre uma discussão. Todos os chefes se recusavam a pagar o fim de semana como horas extras, querendo trocar o período por folgas em segundas ou terças sem graça, pretendendo deixar os sábados e domingos como dias normais. Várias vezes a discussão chegou perto da pancadaria.
O físico avantajado e o jeito sempre violento auxiliavam a chegar num acordo. Na maior parte das vezes, os patrões amedrontados aceitavam pagar algum dinheiro por fora, convencidos de que era a melhor forma de proteger os próprios narizes.
Outra vantagem de trabalhar nas noites de sábados eram as prostitutas que apareciam de madrugada, algumas cansadas, outras bêbadas e muitas drogadas. Sempre rendia uma diversão a mais, no fim do turno. Até os travestis podiam ser divertidos, com aqueles gritinhos agudos, nas noites mais irritantes.
Esta noite de sábado prometia ser horrível, sem Ducarmo e sem o emprego. O obrigava a arrumar diversão do jeito antigo. A dica da secretaria do jornal parecia perigosa. Tinha tudo para ser uma armadilha, carente de confirmação.
Saiu da casa de Ducarmo logo que escureceu, tomando todo o cuidado para não ser visto. Seria uma questão de tempo até a polícia aparecer por ali. O ferro velho ainda se mostrava o esconderijo mais seguro, já que os traficantes negociavam para manter a polícia longe. Foi conferir como estava o local, treinando a nova habilidade de correr e se esconder por cantos escuros.
Não havia nenhuma evidência de visitas indesejadas, resultado de sempre ter sido discreto. Das pouquíssimas pessoas que conheciam o quartinho nos fundos, duas jamais abririam o bico. Bolassete e Ducarmo já não significam nada. Podia continuar escondido no pardieiro por mais alguns dias. Na parte da frente, a oficina de desmanche de carros estava parcialmente desocupada. Há muito tempo ninguém trabalhava ali. Arrumou as peças espalhadas para melhorar o espaço. Usar a nova força física provocava um prazer nunca imaginado, permitindo levantar até as peças mais pesadas com facilidade.
Depois seguiu para o Shopping próximo, levando só uma ferramenta, a necessária, sem nem pensar na condicional. A esta altura, nada mais importava. Se algum tira aparecesse, sabia como se livrar do enxerido. Bastava usar as habilidades recém adquiridas. Jamais voltar para a cadeia se apresentava como outra sensação prazerosa.
O estacionamento do Shopping se assemelhava a uma prateleira de supermercado. Havia muitas opções de modelos, cores e potências. Não precisava de muita coisa. Quanto mais despercebido pudesse passar, melhor.
Usou a gazua na porta de um carro popular, de cor prata, escolhido por ter um bilhete de estacionamento à vista, abandonado no painel. A mesma gazua foi usada para ligar o automóvel. Precisou pagar o bilhete, na saída mais distante do local da coleta, reduzindo a chance de cruzar com o proprietário.
Fazia muito tempo que não dispunha de um carro para uma diversão noturna. A sensação de liberdade era extasiante.
Seguiu para os bairros vizinhos, apenas observando o movimento noturno. Pensava em quantas vezes fez o mesmo roteiro, procurando por lugares onde beber um pouco, até a noite avançar criando mais bêbados. Tomava só o suficiente para dar coragem. É muito mais fácil assaltar quem já está debilitado por várias doses de álcool. Só precisava escolher as vítimas corretas, as que conseguiam manter um pouco de dinheiro disponível.
Houve uma vez em que exagerou um pouco, ficando mais bêbado do que pretendia. A vítima reagiu, ao notar como o revolver estava em mãos tremulas. Nem tinha visto os policiais próximos, despercebidos em consequência do álcool. Foi preso em flagrante, enquadrado no Artigo 157. Três anos até conseguir uma condicional para poder voltar às ruas. Faltava cumprir mais dois.
Não era isso que justificava o desinteresse por bares, nesta noite. Simplesmente sentia-se saciado, satisfeito apenas por ver pessoas vivas, de sangue aquecido. Passava por todos os locais dirigindo devagar, sem intenção de parar, como muita gente nos corredores dos shoppings caminham só para ver as vitrinas.
Passou numa Pizzaria conhecida, comprando duas pizzas acompanhadas do refrigerante de 2 litros oferecido como brinde. Um hábito antigo, que não sabia se conseguiria se livrar. Duas horas depois de iniciar o passeio, chegou ao endereço. Conseguiu uma vaga para estacionar defronte ao prédio, numa área escura, excelente para o caso de uma fuga emergencial. Depois do episódio da garrafa em câmera lenta, havia deduzido que podia passar correndo pelos locais onde não queria ser visto, principalmente onde não havia esgotos e mato servindo de esconderijo. Uma corrida no momento em que a porta da frente foi aberta e chegou ao hall dos elevadores, sem que o porteiro ou qualquer outra pessoa o visse. Mais uma habilidade a ser explorada nos futuros assaltos.
Chegou ao andar rabiscado no pequeno pedaço de papel, quando falou com a secretaria, sem nenhum contratempo. Embora se lembrasse do endereço sem precisar ler nada. Pensou em tocar a campainha, mas isso poderia afugentar a vítima. Ainda estava com a gazua no bolso.
Entrou no apartamento silenciosamente, fechando a porta por dentro. A pequena sala estava com as luzes apagadas, mas não totalmente escura. Luzes bruxuleantes e algumas vozes abafadas saíam da TV ligada no quarto mais próximo.
Um cheiro forte e conhecido o recebeu. Nem precisava de olfato aguçado para reconhecer o fétido odor de vômito misturado com álcool. A mulher deitada no sofá nadava numa poça produzida por ela mesma. Um copo e um litro de uísque barato, ambos vazios, jaziam no chão. Ducarmo havia sido encontrada muitas vezes na mesma situação, com a única diferença de que a bebida não era uísque. O ronco da mulher, em espaços ritmados, se sobrepunha ao barulho que vinha do quarto.
Aproximou-se da mulher. A enorme mão se fechou sobre a garganta babada, calando o barulho irritante para sempre. Não estava com sede e mesmo que estivesse, o gosto daquele sangue devia ser horrível. O cheiro não ajudava.
Esgueirou-se para o quarto próximo.
Um menino deitado assistia algum filme da programação noturna, provavelmente proibido para a idade que aparentava. Dois olhinhos assustados o encararam. Falou baixo, como se não pretendesse acordar mais ninguém.
— Tem mais alguém aqui? Onde está a escritora?
— Quem?
— A mulher do jornal que está cuidando de você.
— Nenhuma mulher cuida de mim. Só tem eu e a minha mãe. Ela está dormindo na sala.
— Porra, eu devia saber que era mentira. Levante-se, vamos dar um passeio.
O garoto se encolheu, tremendo.
— Não vou te fazer nada, pode vir. É só um passeio. Sua mãe não vai acordar antes do dia nascer, pode confiar. Depois te trago de volta para ela.
— Aonde vai me levar?
— Para uma oficina de carros muito legal. Você vai me ajudar a fazer um conserto. Eu sou mecânico de carros. Pode me chamar de Alemão. Qual o seu nome?
— Zacharias.
— Legal, Zach. Vista-se e pegue uma blusa. Lá fora está frio.
— Minha mãe sabe desse passeio? De noite?
— Sabe, mas ela deve ter se esquecido de falar. Foi ela que me pediu para vir te buscar.
— É, ela sempre se esquece de tudo.
— Não vamos acordá-la só por causa disso. Deixa ela descansar para melhorar. Acho que ela passou mal.
— É a terceira vez essa semana. Depois eu é que tenho de limpar tudo.
O menino estava se acalmando, sem desconfiar de nada. Pegou algumas roupas num armário e foi se trocar no banheiro. Gê aguardou no quarto, onde o mal cheiro, um pouco mais fraco, não incomodava tanto.
Zach voltou vestindo um agasalho escolar, com capuz. Passou pela sala com cuidado para não sujar o tênis, acompanhando o estranho para fora do apartamento, evitando importunar a mãe anormalmente silenciosa. Estava acostumado com homens estranhos em casa, mesmo antes do pai ir embora, mas esse foi o primeiro de quem recebeu atenção.
No elevador enquanto desciam, Gê cansou de brincar. Não podia ser visto saindo com o menino.
Bem rápido como só agora ele conseguia fazer, puxou o capuz para a frente, cobrindo a cabeça e a boca do garoto, usando uma das mãos para imobilizá-lo. Com a outra, não precisou fazer força para levantá-lo, segurando-o atravessado sob um dos braços, como um saco de cereais. Saiu do elevador correndo, sem ser visto, deixando a impressão de ter sido o vento que abriu a porta da rua.
No carro, o menino assustado, já chorando e soluçando, se deixou ser jogado no banco traseiro, com as mãos e pés amarrados juntos pelo cordão retirado do capuz.
— Cala a boca, Zach. Não vou te fazer mal, somos amigos. Só vamos brincar um pouco de agente secreto. Vou te soltar logo, para a gente comer algumas pizzas.