Vampiros em Guarulhos
Algumas pessoas pensam em outubro como o Mês do Terror, graças ao Halloween, o Dia das Bruxas.
Seguindo essa linha, o trecho deste mês é sobre um terror leve, com uma escritora vampira e motoqueira. O primeiro capítulo de um romance que se passa em Guarulhos, São Paulo.
Já comentei dela, mas faz tempo. Conheçam Giulia Denich.
"
O crítico literário
Havia ligado
discretamente para todos os contatos na editora, para blogueiros e para amigos
na imprensa. Sempre contou com os amigos, embora fossem poucos.
Teve sucesso.
Conseguiu o telefone do homem durante a semana, depois da minuciosa
investigação. Ligou para ele na véspera. O sujeito atendeu com voz de sono,
embora a ligação tivesse ocorrido pouco depois das dezoito horas:
— Alô?
— Senhor
Aristodemo Marcoso?
— Sim, sou eu.
Você tem algum horário marcado?
A pergunta poderia
ser normal se tivesse ligado para um médico ou um advogado, mas soou
estranha para um crítico literário. Preferiu não discutir e fazer o jogo dele,
para não perder a oportunidade.
— Não senhor, mas
quero marcar uma. Está disponível amanhã à noite?
— Depende. Quem é
você e qual o assunto?
— É um assunto que
interessa a nós dois. Li na internet que o senhor é um especialista em
vampiros. Preciso de uma hora com o senhor para aprender alguma coisa. Sou a
Giulia Denich, a quem o senhor chama de menina mimada, dizendo que finjo ser
escritora.
— Isso é alguma
brincadeira? Uma pegadinha?
— Não, senhor
Marcoso. Realmente preciso de alguns conselhos. Admito que preciso lapidar
melhor as minhas personagens.
— Isso está me
parecendo muito estranho. Mas acho que posso te ajudar a melhorar. Podemos nos
encontrar em algum restaurante…
— Senhor Marcoso,
seria embaraçoso se a imprensa ou algum dos meus leitores nos visse juntos.
Poderiam interpretar de um milhão de maneiras, todas erradas. Prefiro algum
lugar mais discreto. Não me importo se vier ao meu apartamento ou eu ir ao seu.
Prometo não desperdiçar o seu tempo.
— Você está me
deixando curioso. Pode mesmo vir ao meu apartamento?
— Só preciso do
endereço. Amanhã à noite, nove horas está bom? Posso contar com sua discrição,
para manter este encontro em sigilo?
A conversa toda
não durou nem um minuto. O suficiente para deixá-la excitada. Queria dizer umas
poucas e boas para o sujeito metido, cara a cara.
Estava arrumada
para o encontro, uma hora antes da hora marcada. Havia decidido se vestir como uma
das suas personagens preferidas, para causar mais impacto, o que demorou apenas
dez minutos. Calças e botas de couro, justas, para se moldarem ao corpo esguio.
Uma leve blusa cor-de-rosa fechada por botões, sem nada por baixo, devido ao
calor e por ser mais confortável. Cabelos negros presos com uma fita, formando
um rabo-de-cavalo, facilitando a colocação do capacete. Um batom vermelho,
contrastando com a pele clara, foi a única maquiagem.
A jaqueta de couro
e as luvas completavam a preparação. Tinha bolsos suficientes para acomodar as
chaves, o batom, o celular, algum dinheiro e os apetrechos femininos
obrigatórios, dispensando a tradicional bolsa que sempre carregava.
A potente
motocicleta de 750 cilindradas a levou até o destino em poucos minutos, circulando
ligeira entre os carros. Pilotava com a habilidade de quem estava acostumada a
dirigir normalmente à noite.
O endereço era de
um pequeno prédio residencial perto do Centro da cidade de São Paulo. Passou despercebida
pelo porteiro displicente e subiu ao andar indicado, levando o capacete. Pelo
jeito, o prédio recebia muitas visitantes, já que ninguém prestou atenção nela.
Tocou a campainha do apartamento exatamente no horário combinado.
Aristodemo
Marcoso, o crítico literário que sempre a atacava em todas as mídias, a recebeu
com um clichê nada criativo:
— Não estava
acreditando que você viria. É mais bonita pessoalmente do que nas fotos.
— Posso entrar?
— Claro, entre.
Gostei da roupa. Está vestida de Kireina Bakku, certo?
— Ora, estou
surpresa! O senhor realmente lê meus livros! Mas onde viu fotos minhas? Odeio
ser fotografada.
A surpresa foi
real, mas não impediu que ela analisasse a toca do inimigo, como uma boa
escritora procurando por detalhes a usar num cenário.
A sala do
apartamento é pouco espaçosa, ocupada por dois sofás de dois lugares cada,
separados por uma mesa central com tampo de vidro, sobre um tapete felpudo.
Paredes, cortina e mobília em tons beges. Uma estante com muitos livros
disputando espaço com a TV, ao lado da porta, dominava a decoração. No lado
oposto, um corredor levava aos demais aposentos. Giulia abriu todo o zíper da
jaqueta, se dirigiu a um dos sofás, sentou-se e cruzou as pernas. Quando
colocou o capacete no assento do lado, o botão superior da blusa se abriu. Os
olhos do homem se desviaram imediatamente para o colo dela, se concentrando nos
contornos delineados pelo tecido fino. Ele sentou-se no sofá oposto,
descaradamente procurando por um ângulo de visão melhor.
— Sim, eu leio, o
que não significa que concordo. E tenho alguns amigos paparazzi. Lembro da
personagem. Uma mocinha com quatrocentos anos trabalhando como assassina para a
Yakuza. É meio forçado, não acha?
— Para mim parece
natural. Ao contrário de ter minha imagem divulgada sem autorização.
— Relaxa, não foi
divulgada. Eu vi as fotos no estúdio particular do meu amigo. E aquela outra
personagem, então? Como você a chamou? Tália? Uma vampira que trabalha como
monitora numa academia de ginástica, para pagar o aluguel! Você devia escrever
comédia.
— Porque acha
estranho vampiras precisarem trabalhar?
— Ora, todo mundo
sabe que vampiros só pensam em beber sangue. Não fazem outra coisa.
Mortos-vivos são todos iguais.
— Não sei de onde
tirou essa ideia. Talvez fosse assim na Idade Média, quando vampiros viviam em
castelos, com escravos subjugados pelo terror. Conhece algum castelo em São
Paulo, que possa abrigar vampiros?
— Você fala como
se esses monstros realmente existissem. Isso é que torna seus livros quase
infantis. Não consegue retratá-los como todo o mundo os conhece: seres
horripilantes, mortos-vivos cadavéricos, corpos gelados e putrefatos.
— Senhor Marcoso,
sua visão é completamente irreal. Isso que está descrevendo são zumbis, não
vampiros. Não leu Crepúsculo? É ficção, mas contém uma base crível. Vampiros
são predadores, que usam a própria beleza para seduzir as vítimas. São forçados
a se manter escondidos, para continuar sobrevivendo, já que não são imortais e
possuem inimigos.
— Sim, e são
fluorescentes, leem pensamentos e voam, mesmo sem asas.
— Essa é a parte
ficcional. Vampiros reais não são assim.
— Quer me
convencer que Alana, Kireina, Tália e todas as outras personagens foram
baseadas em pessoas reais?
— Quero dizer que
são personagens possíveis. Isso está explicado nos livros. E quanto ao senhor,
já conheceu algum vampiro?
— Já li a maioria
dos livros que tratam do assunto. Até os seus.
— Mas não sabe
reconhecer um vampiro, se cruzar com um.
— Aonde quer
chegar? Tenho olfato, tenho olhos e sei me defender. Não devia te dizer isto,
mas até guardo um crucifixo numa gaveta da estante.
— Símbolos
religiosos funcionavam bem na Idade Média, quando o povo realmente tinha fé.
Hoje, estão desacreditados. Não vai afugentar nenhum vampiro com isso. Seu
olfato não serve para nada. Vampiros não dormem na terra em caixões, muito
menos em esgotos. Tomam banho regularmente e usam perfumes. Sem o treinamento
adequado ninguém consegue ver os detalhes que os diferenciam. Como sabe que não
sou uma vampira?
— Interessante.
Você vestiu mesmo a personagem. Só esqueceu de colocar as asas de morcego, as
presas fora da boca e o vestido esvoaçante. Ora, não desperdice meu tempo. Veio
aqui para me convencer ou quer mesmo aprender alguma coisa?
— Nem uma nem
outra. Vim porque tinha uma hora livre antes do jantar, e queria conversar com
um suposto especialista em vampiros. Talvez seja eu quem esteja desperdiçando
uma hora.
— Se queria
jantar, devia ter me dito. Não precisamos ir a um restaurante, mas posso pedir
alguma coisa. É só deixar essa história de vampiros de lado e talvez ainda
possamos nos entender.
O homem não tirava
os olhos daquele decote provocador, insinuando pequenos detalhes conforme ela
mexia os braços. A mulher descruzou as pernas, se levantou e caminhou dois
passos até a estante, lendo os títulos dos livros. Mesmo com o calor,
continuava usando as luvas. Agora o homem a via de perfil, constatando que
havia muitos outros volumes a serem admirados e possivelmente explorados.
— Antes de
encerrar o assunto, deixe-me contar o que sei sobre vampiros. São pessoas que
morreram contaminadas por um vírus regenerativo, e continuam sobrevivendo por
séculos, se alimentando regularmente de sangue humano. Sangue fresco é usado
para alimentar o vírus e regenerar os corpos. Em média consomem cerca de dois a
três litros de sangue de cada vez, que pode ser extraído dos vivos, sejam homens, mulheres ou
crianças. Durante essa sobrevida acumulam conhecimentos, aprimorando a
capacidade de se ocultar. Ocupam posições de poder na atualidade, morando em
mansões, casas luxuosas ou apartamentos de cobertura. Não usam mais escravos,
embora alguns ainda gostem disso. Pagam empregados para limpar as moradias, lavar
roupas e preparar alimentos normais, uma necessidade da parte dos corpos que
continua humana. Ou seja, enquanto não chega o momento de alimentar o vírus,
são pessoas normais como eu ou você.
— Esse é o tema
recorrente dos seus livros. Chato e cansativo. Porque está me contando isso?
— Sou uma
escritora. Não gosto de deixar assuntos mal esclarecidos ou pontas soltas. Você
disse que não me apresentei com asas, presas ou vestido esvoaçante. O vírus
regenera, não permite transfiguração em morcegos. Precisa existir outras
condições para adquirir essa capacidade. As presas funcionam como as garras de
um gato. Normalmente ficam recolhidas, se expandindo apenas quando são
necessárias. Quanto ao vestido, acontece que moro sozinha. Sou quem lava minhas
roupas e manchas de sangue são difíceis de limpar. Como vim de moto nessa noite
quente, coloquei roupas mais apropriadas. Se você tivesse ido ao meu
apartamento, talvez eu estivesse usando um vestido transparente sobre um
biquíni de couro, como aqueles que Donatello obrigava as vítimas dele a
colocarem. Adoro roupas de couro, pela facilidade de limpeza.
— Está falando do
capitão pirata? Outra baboseira. Não consigo imaginar um vampiro com fetiches
deste tipo.
— Que bom. Leu
toda a trilogia.
Giulia se virou de
frente para o homem e tirou a jaqueta, atirando-a sobre o capacete no sofá. A
blusa se adaptou melhor ao corpo, se abrindo mais onde o botão estava
desabotoado e proporcionando uma visão mais detalhada dos volumes que ocultava.
Marcoso sentiu uma reação conhecida, nos próprios músculos, ficando
momentaneamente sem palavras para retrucar. Antes que abrisse a boca, ela
continuou.
— É preciso ser do
ramo para ver os efeitos da regeneração na pele de um vampiro. Não existem
espinhas, manchas ou cicatrizes. Eu mantenho a mesma aparência de quando fui
infectada. Tinha vinte e seis anos quando aconteceu. No mês que vem farei meu
ducentésimo trigésimo quarto aniversário. Só outro vampiro consegue perceber
essas sutilezas
— Acho que estou
entendendo. Você veio aqui me dizer que é uma vampira de 234 anos, mas exibindo
um corpo quase adolescente. Toda essa conversa fiada é só para me convencer a
não escrever mais nenhuma crítica sobre seus livros bobos. Devo ter incomodado
de verdade para você vir se oferecer desse jeito.
— Desisto. Mesmo
com todas as dicas que estou dando você não entende mesmo. Última chance. Antes
de encerrarmos esta conversa, venha conferir como minha pele é quente, meu
coração bate e tenho cheiro de perfume francês. Tem um detalhe importante:
vampiros não possuem alma, nem escrúpulos e nem pudor.
Rapidamente ela
desabotoou os outros botões da blusa, tirou-a e jogou displicentemente sobre a
jaqueta no sofá. Abriu os braços, exibindo por completo os seios firmes no
corpo perfeito, nua da cintura para cima, esperando uma atitude do homem. Ainda
com as luvas, atiçando um fetiche ainda maior.
— Agora você se
revelou de verdade. Não passa de uma piranha. Não me importo, eu até gosto.
Vamos nos aquecer um pouco, depois peço alguma coisa para o jantar.
— Aquecimento?
Nesse calor? Acha que estou tirando a roupa para te seduzir, idiota? Eu gosto
dessa blusa, não pretendo sujá-la. E não disse que nós vamos jantar. Eu
vou! Você é o meu jantar!
Marcoso mal
percebeu a ênfase no que a escritora dizia. Com olhos arregalados viu os quatro
dentes caninos se expandindo para fora da boca vermelha de batom. Algumas veias
devem ter sido repuxadas no maxilar superior, provocando um efeito de inchaço e
vermelhidão nos olhos. O rosto, até então bonito e desejável, se transformou
naturalmente numa máscara aterrorizante, sem ter feito uso de nenhuma
maquiagem.
O susto foi
seguido pelo pânico. Ele se levantou e tentou correr para a cozinha. Foi
bloqueado quando a mulher se materializou no corredor, como se existisse
teletransporte. Foi tão rápido que ele se chocou involuntariamente contra o par
de seios macios. Lembrou-se da velocidade dos vampiros descrita na série True
Blood. Ela estendeu os braços o afastando, como se fosse um atropelamento,
o jogando de volta ao sofá. Velozmente se posicionou por trás dele, puxando
ambos os braços e os prendendo nas costas, segurando pelos pulsos, com apenas
uma das mãos. A outra mão foi usada para prender o queixo, impedindo que ele
gritasse. Preso contra o sofá, ele conseguia mover as pernas, mas sem sair do
lugar, como se estivesse amarrado por garras de aço. Sentiu a dor das presas se
enterrando com força no pescoço, seguido de uma tontura imediata, quando o fluxo
de sangue deixou de chegar ao cérebro. Antes de perder a consciência, a última
coisa a lhe passar pela mente foi que a morte tem seios quentes,
macios e excitantes. Pode senti-los encostados nos ombros.
Giulia não
absorveu todo o sangue. Quando achou que a quantidade era suficiente, se ergueu
puxando o corpo do homem desfalecido sem soltar a boca do pescoço dele. O
segurava pelos braços como se fosse um boneco de pano. Foi até a beirada do
tapete, tateando com as botas até sentir o desnível provocado pelas cerdas
altas. Encostou o pé do homem no tapete, retirou a boca do pescoço e o atirou
com força contra o tampo da mesinha. O vidro se espatifou em dezenas de pedaços se espalhando sobre o tapete. Se abaixou sobre o corpo procurando um caco
de vidro do tamanho e formato ideal. Pegou um triangular e o enterrou no
pescoço do moribundo, de um jeito que escondia as marcas feitas pelos dentes. O
coração ainda em funcionamento se incumbiu de jogar o resto do sangue no tapete
felpudo, através do corte.
Esperou até o
coração parar. Depois deu uma pequena e forte torção no pescoço, provocando uma
fratura na coluna. A cidade ficará melhor sem outro vampiro, ainda mais de um
tão ingênuo.
Levantou-se e
observou ao redor, procurando por alguma coisa que pudesse comprometer o
suposto acidente fatal. Afofou o tapete nos locais onde havia pisado,
eliminando pegadas das botas. Nenhuma polícia técnica encontraria evidencias de
um assassinato. Não havia necessidade de os policiais conferirem a quantidade
de sangue que escorreu para o tapete, até pela dificuldade de fazer isso.
Caminhou até a
jaqueta e pegou um pacotinho de lenços descartáveis no bolso. Limpou as últimas
gotas de sangue da boca e as que pingaram nos seios, em movimentos bem
vagarosos. Adorava acariciar o próprio corpo. Guardou os lenços sujos em outro
bolso da jaqueta. Este cenário não é igual ao que usou no Sorriso de Alana,
quando a vampirinha escondeu outro assassinato. Alana não precisou de
lenços.
Calmamente vestiu
a blusa, a jaqueta e colocou o capacete. Saiu do prédio sem ser notada,
correndo velozmente onde poderia haver câmeras ou olhos indiscretos.
Quando chegou na
moto, estava pensando no fechamento de um capítulo do livro que havia iniciado
na semana anterior:
“A assassina mais
letal da Yakuza completou outra missão com sucesso. Era a única integrante da
organização, que não usava nenhuma tatuagem, conhecida pela cúpula como Kireina
Bakku, a de costas limpas. Nem todas as missões eram feitas por dinheiro.
Algumas ela executava apenas por prazer. O prazer de matar. Saciada e
satisfeita, ligou a potente motocicleta e retornou para a noite, o ambiente
onde reinava absoluta. ”
Tinha um mês antes
da próxima refeição. Suficiente para descobrir quem é o paparazzo indiscreto.
Pelo menos, é o que ela pensava."