terça-feira, 21 de novembro de 2017

Semana da Black Friday 2017

Nesta semana comemorativa, seguem dois momentos da vida aventureira do Recruta.
Dois contatos imediatos, um de Quarto Grau e outro de Sétimo Grau, conforme a Tabela de avistamentos de Josef Allen Hynek na versão estendida.
Um e-book foi sugerido pela Amazon, que gostou de promover "O espírito de Natal".
O outro é um presente meu nesta semana, pegando carona no espírito da coisa, sem trocadilho.
"A mulher mais quente do universo" não podia ser prevista, nem mesmo por Hynek. Enquanto o cientista pensou em três graus básicos, o Recruta já chegou no sétimo. E só está começando.

Links:
 http://bit.ly/Recruta4 (em promoção até dia 27/11)
 http://bit.ly/Recruta03 (em promoção até dia 25/11)


sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Trecho de Outubro - Vampiros em Guarulhos

Vampiros em Guarulhos

Algumas pessoas pensam em outubro como o Mês do Terror, graças ao Halloween, o Dia das Bruxas.
Seguindo essa linha, o trecho deste mês é sobre um terror leve, com uma escritora vampira e motoqueira. O primeiro capítulo de um romance que se passa em Guarulhos, São Paulo.
Já comentei dela, mas faz tempo. Conheçam Giulia Denich.



O crítico literário

                                                                                                     
Havia ligado discretamente para todos os contatos na editora, para blogueiros e para amigos na imprensa. Sempre contou com os amigos, embora fossem poucos.
Teve sucesso. Conseguiu o telefone do homem durante a semana, depois da minuciosa investigação. Ligou para ele na véspera. O sujeito atendeu com voz de sono, embora a ligação tivesse ocorrido pouco depois das dezoito horas:
— Alô?
— Senhor Aristodemo Marcoso?
— Sim, sou eu. Você tem algum horário marcado?
A pergunta poderia ser normal se tivesse ligado para um médico ou um advogado, mas soou estranha para um crítico literário. Preferiu não discutir e fazer o jogo dele, para não perder a oportunidade.
— Não senhor, mas quero marcar uma. Está disponível amanhã à noite?
— Depende. Quem é você e qual o assunto?
— É um assunto que interessa a nós dois. Li na internet que o senhor é um especialista em vampiros. Preciso de uma hora com o senhor para aprender alguma coisa. Sou a Giulia Denich, a quem o senhor chama de menina mimada, dizendo que finjo ser escritora.
— Isso é alguma brincadeira? Uma pegadinha?
— Não, senhor Marcoso. Realmente preciso de alguns conselhos. Admito que preciso lapidar melhor as minhas personagens.
— Isso está me parecendo muito estranho. Mas acho que posso te ajudar a melhorar. Podemos nos encontrar em algum restaurante…
— Senhor Marcoso, seria embaraçoso se a imprensa ou algum dos meus leitores nos visse juntos. Poderiam interpretar de um milhão de maneiras, todas erradas. Prefiro algum lugar mais discreto. Não me importo se vier ao meu apartamento ou eu ir ao seu. Prometo não desperdiçar o seu tempo.
— Você está me deixando curioso. Pode mesmo vir ao meu apartamento?
— Só preciso do endereço. Amanhã à noite, nove horas está bom? Posso contar com sua discrição, para manter este encontro em sigilo?
A conversa toda não durou nem um minuto. O suficiente para deixá-la excitada. Queria dizer umas poucas e boas para o sujeito metido, cara a cara.
Estava arrumada para o encontro, uma hora antes da hora marcada. Havia decidido se vestir como uma das suas personagens preferidas, para causar mais impacto, o que demorou apenas dez minutos. Calças e botas de couro, justas, para se moldarem ao corpo esguio. Uma leve blusa cor-de-rosa fechada por botões, sem nada por baixo, devido ao calor e por ser mais confortável. Cabelos negros presos com uma fita, formando um rabo-de-cavalo, facilitando a colocação do capacete. Um batom vermelho, contrastando com a pele clara, foi a única maquiagem.
A jaqueta de couro e as luvas completavam a preparação. Tinha bolsos suficientes para acomodar as chaves, o batom, o celular, algum dinheiro e os apetrechos femininos obrigatórios, dispensando a tradicional bolsa que sempre carregava.
A potente motocicleta de 750 cilindradas a levou até o destino em poucos minutos, circulando ligeira entre os carros. Pilotava com a habilidade de quem estava acostumada a dirigir normalmente à noite.
O endereço era de um pequeno prédio residencial perto do Centro da cidade de São Paulo. Passou despercebida pelo porteiro displicente e subiu ao andar indicado, levando o capacete. Pelo jeito, o prédio recebia muitas visitantes, já que ninguém prestou atenção nela. Tocou a campainha do apartamento exatamente no horário combinado.
Aristodemo Marcoso, o crítico literário que sempre a atacava em todas as mídias, a recebeu com um clichê nada criativo:
— Não estava acreditando que você viria. É mais bonita pessoalmente do que nas fotos.
— Posso entrar?
— Claro, entre. Gostei da roupa. Está vestida de Kireina Bakku, certo?
— Ora, estou surpresa! O senhor realmente lê meus livros! Mas onde viu fotos minhas? Odeio ser fotografada.
A surpresa foi real, mas não impediu que ela analisasse a toca do inimigo, como uma boa escritora procurando por detalhes a usar num cenário.
A sala do apartamento é pouco espaçosa, ocupada por dois sofás de dois lugares cada, separados por uma mesa central com tampo de vidro, sobre um tapete felpudo. Paredes, cortina e mobília em tons beges. Uma estante com muitos livros disputando espaço com a TV, ao lado da porta, dominava a decoração. No lado oposto, um corredor levava aos demais aposentos. Giulia abriu todo o zíper da jaqueta, se dirigiu a um dos sofás, sentou-se e cruzou as pernas. Quando colocou o capacete no assento do lado, o botão superior da blusa se abriu. Os olhos do homem se desviaram imediatamente para o colo dela, se concentrando nos contornos delineados pelo tecido fino. Ele sentou-se no sofá oposto, descaradamente procurando por um ângulo de visão melhor.
— Sim, eu leio, o que não significa que concordo. E tenho alguns amigos paparazzi. Lembro da personagem. Uma mocinha com quatrocentos anos trabalhando como assassina para a Yakuza. É meio forçado, não acha?
— Para mim parece natural. Ao contrário de ter minha imagem divulgada sem autorização.
— Relaxa, não foi divulgada. Eu vi as fotos no estúdio particular do meu amigo. E aquela outra personagem, então? Como você a chamou? Tália? Uma vampira que trabalha como monitora numa academia de ginástica, para pagar o aluguel! Você devia escrever comédia.
— Porque acha estranho vampiras precisarem trabalhar?
— Ora, todo mundo sabe que vampiros só pensam em beber sangue. Não fazem outra coisa. Mortos-vivos são todos iguais.
— Não sei de onde tirou essa ideia. Talvez fosse assim na Idade Média, quando vampiros viviam em castelos, com escravos subjugados pelo terror. Conhece algum castelo em São Paulo, que possa abrigar vampiros?
— Você fala como se esses monstros realmente existissem. Isso é que torna seus livros quase infantis. Não consegue retratá-los como todo o mundo os conhece: seres horripilantes, mortos-vivos cadavéricos, corpos gelados e putrefatos.
— Senhor Marcoso, sua visão é completamente irreal. Isso que está descrevendo são zumbis, não vampiros. Não leu Crepúsculo? É ficção, mas contém uma base crível. Vampiros são predadores, que usam a própria beleza para seduzir as vítimas. São forçados a se manter escondidos, para continuar sobrevivendo, já que não são imortais e possuem inimigos.
— Sim, e são fluorescentes, leem pensamentos e voam, mesmo sem asas.
— Essa é a parte ficcional. Vampiros reais não são assim.
— Quer me convencer que Alana, Kireina, Tália e todas as outras personagens foram baseadas em pessoas reais?
— Quero dizer que são personagens possíveis. Isso está explicado nos livros. E quanto ao senhor, já conheceu algum vampiro?
— Já li a maioria dos livros que tratam do assunto. Até os seus.
— Mas não sabe reconhecer um vampiro, se cruzar com um.
— Aonde quer chegar? Tenho olfato, tenho olhos e sei me defender. Não devia te dizer isto, mas até guardo um crucifixo numa gaveta da estante.
— Símbolos religiosos funcionavam bem na Idade Média, quando o povo realmente tinha fé. Hoje, estão desacreditados. Não vai afugentar nenhum vampiro com isso. Seu olfato não serve para nada. Vampiros não dormem na terra em caixões, muito menos em esgotos. Tomam banho regularmente e usam perfumes. Sem o treinamento adequado ninguém consegue ver os detalhes que os diferenciam. Como sabe que não sou uma vampira?
— Interessante. Você vestiu mesmo a personagem. Só esqueceu de colocar as asas de morcego, as presas fora da boca e o vestido esvoaçante. Ora, não desperdice meu tempo. Veio aqui para me convencer ou quer mesmo aprender alguma coisa?
— Nem uma nem outra. Vim porque tinha uma hora livre antes do jantar, e queria conversar com um suposto especialista em vampiros. Talvez seja eu quem esteja desperdiçando uma hora.
— Se queria jantar, devia ter me dito. Não precisamos ir a um restaurante, mas posso pedir alguma coisa. É só deixar essa história de vampiros de lado e talvez ainda possamos nos entender.
O homem não tirava os olhos daquele decote provocador, insinuando pequenos detalhes conforme ela mexia os braços. A mulher descruzou as pernas, se levantou e caminhou dois passos até a estante, lendo os títulos dos livros. Mesmo com o calor, continuava usando as luvas. Agora o homem a via de perfil, constatando que havia muitos outros volumes a serem admirados e possivelmente explorados.
— Antes de encerrar o assunto, deixe-me contar o que sei sobre vampiros. São pessoas que morreram contaminadas por um vírus regenerativo, e continuam sobrevivendo por séculos, se alimentando regularmente de sangue humano. Sangue fresco é usado para alimentar o vírus e regenerar os corpos. Em média consomem cerca de dois a três litros de sangue de cada vez, que pode ser extraído dos vivos, sejam homens, mulheres ou crianças. Durante essa sobrevida acumulam conhecimentos, aprimorando a capacidade de se ocultar. Ocupam posições de poder na atualidade, morando em mansões, casas luxuosas ou apartamentos de cobertura. Não usam mais escravos, embora alguns ainda gostem disso. Pagam empregados para limpar as moradias, lavar roupas e preparar alimentos normais, uma necessidade da parte dos corpos que continua humana. Ou seja, enquanto não chega o momento de alimentar o vírus, são pessoas normais como eu ou você.
— Esse é o tema recorrente dos seus livros. Chato e cansativo. Porque está me contando isso?
— Sou uma escritora. Não gosto de deixar assuntos mal esclarecidos ou pontas soltas. Você disse que não me apresentei com asas, presas ou vestido esvoaçante. O vírus regenera, não permite transfiguração em morcegos. Precisa existir outras condições para adquirir essa capacidade. As presas funcionam como as garras de um gato. Normalmente ficam recolhidas, se expandindo apenas quando são necessárias. Quanto ao vestido, acontece que moro sozinha. Sou quem lava minhas roupas e manchas de sangue são difíceis de limpar. Como vim de moto nessa noite quente, coloquei roupas mais apropriadas. Se você tivesse ido ao meu apartamento, talvez eu estivesse usando um vestido transparente sobre um biquíni de couro, como aqueles que Donatello obrigava as vítimas dele a colocarem. Adoro roupas de couro, pela facilidade de limpeza.
— Está falando do capitão pirata? Outra baboseira. Não consigo imaginar um vampiro com fetiches deste tipo.
— Que bom. Leu toda a trilogia.
Giulia se virou de frente para o homem e tirou a jaqueta, atirando-a sobre o capacete no sofá. A blusa se adaptou melhor ao corpo, se abrindo mais onde o botão estava desabotoado e proporcionando uma visão mais detalhada dos volumes que ocultava. Marcoso sentiu uma reação conhecida, nos próprios músculos, ficando momentaneamente sem palavras para retrucar. Antes que abrisse a boca, ela continuou.
— É preciso ser do ramo para ver os efeitos da regeneração na pele de um vampiro. Não existem espinhas, manchas ou cicatrizes. Eu mantenho a mesma aparência de quando fui infectada. Tinha vinte e seis anos quando aconteceu. No mês que vem farei meu ducentésimo trigésimo quarto aniversário. Só outro vampiro consegue perceber essas sutilezas
— Acho que estou entendendo. Você veio aqui me dizer que é uma vampira de 234 anos, mas exibindo um corpo quase adolescente. Toda essa conversa fiada é só para me convencer a não escrever mais nenhuma crítica sobre seus livros bobos. Devo ter incomodado de verdade para você vir se oferecer desse jeito.
— Desisto. Mesmo com todas as dicas que estou dando você não entende mesmo. Última chance. Antes de encerrarmos esta conversa, venha conferir como minha pele é quente, meu coração bate e tenho cheiro de perfume francês. Tem um detalhe importante: vampiros não possuem alma, nem escrúpulos e nem pudor.
Rapidamente ela desabotoou os outros botões da blusa, tirou-a e jogou displicentemente sobre a jaqueta no sofá. Abriu os braços, exibindo por completo os seios firmes no corpo perfeito, nua da cintura para cima, esperando uma atitude do homem. Ainda com as luvas, atiçando um fetiche ainda maior.
— Agora você se revelou de verdade. Não passa de uma piranha. Não me importo, eu até gosto. Vamos nos aquecer um pouco, depois peço alguma coisa para o jantar.
— Aquecimento? Nesse calor? Acha que estou tirando a roupa para te seduzir, idiota? Eu gosto dessa blusa, não pretendo sujá-la. E não disse que nós vamos jantar. Eu vou! Você é o meu jantar!
Marcoso mal percebeu a ênfase no que a escritora dizia. Com olhos arregalados viu os quatro dentes caninos se expandindo para fora da boca vermelha de batom. Algumas veias devem ter sido repuxadas no maxilar superior, provocando um efeito de inchaço e vermelhidão nos olhos. O rosto, até então bonito e desejável, se transformou naturalmente numa máscara aterrorizante, sem ter feito uso de nenhuma maquiagem.
O susto foi seguido pelo pânico. Ele se levantou e tentou correr para a cozinha. Foi bloqueado quando a mulher se materializou no corredor, como se existisse teletransporte. Foi tão rápido que ele se chocou involuntariamente contra o par de seios macios. Lembrou-se da velocidade dos vampiros descrita na série True Blood. Ela estendeu os braços o afastando, como se fosse um atropelamento, o jogando de volta ao sofá. Velozmente se posicionou por trás dele, puxando ambos os braços e os prendendo nas costas, segurando pelos pulsos, com apenas uma das mãos. A outra mão foi usada para prender o queixo, impedindo que ele gritasse. Preso contra o sofá, ele conseguia mover as pernas, mas sem sair do lugar, como se estivesse amarrado por garras de aço. Sentiu a dor das presas se enterrando com força no pescoço, seguido de uma tontura imediata, quando o fluxo de sangue deixou de chegar ao cérebro. Antes de perder a consciência, a última coisa a lhe passar pela mente foi que a morte tem seios quentes, macios e excitantes. Pode senti-los encostados nos ombros.
Giulia não absorveu todo o sangue. Quando achou que a quantidade era suficiente, se ergueu puxando o corpo do homem desfalecido sem soltar a boca do pescoço dele. O segurava pelos braços como se fosse um boneco de pano. Foi até a beirada do tapete, tateando com as botas até sentir o desnível provocado pelas cerdas altas. Encostou o pé do homem no tapete, retirou a boca do pescoço e o atirou com força contra o tampo da mesinha. O vidro se espatifou em dezenas de pedaços se espalhando sobre o tapete. Se abaixou sobre o corpo procurando um caco de vidro do tamanho e formato ideal. Pegou um triangular e o enterrou no pescoço do moribundo, de um jeito que escondia as marcas feitas pelos dentes. O coração ainda em funcionamento se incumbiu de jogar o resto do sangue no tapete felpudo, através do corte.
Esperou até o coração parar. Depois deu uma pequena e forte torção no pescoço, provocando uma fratura na coluna. A cidade ficará melhor sem outro vampiro, ainda mais de um tão ingênuo.
Levantou-se e observou ao redor, procurando por alguma coisa que pudesse comprometer o suposto acidente fatal. Afofou o tapete nos locais onde havia pisado, eliminando pegadas das botas. Nenhuma polícia técnica encontraria evidencias de um assassinato. Não havia necessidade de os policiais conferirem a quantidade de sangue que escorreu para o tapete, até pela dificuldade de fazer isso.
Caminhou até a jaqueta e pegou um pacotinho de lenços descartáveis no bolso. Limpou as últimas gotas de sangue da boca e as que pingaram nos seios, em movimentos bem vagarosos. Adorava acariciar o próprio corpo. Guardou os lenços sujos em outro bolso da jaqueta. Este cenário não é igual ao que usou no Sorriso de Alana, quando a vampirinha escondeu outro assassinato. Alana não precisou de lenços.
Calmamente vestiu a blusa, a jaqueta e colocou o capacete. Saiu do prédio sem ser notada, correndo velozmente onde poderia haver câmeras ou olhos indiscretos.
Quando chegou na moto, estava pensando no fechamento de um capítulo do livro que havia iniciado na semana anterior:
“A assassina mais letal da Yakuza completou outra missão com sucesso. Era a única integrante da organização, que não usava nenhuma tatuagem, conhecida pela cúpula como Kireina Bakku, a de costas limpas. Nem todas as missões eram feitas por dinheiro. Algumas ela executava apenas por prazer. O prazer de matar. Saciada e satisfeita, ligou a potente motocicleta e retornou para a noite, o ambiente onde reinava absoluta. ”
Tinha um mês antes da próxima refeição. Suficiente para descobrir quem é o paparazzo indiscreto. Pelo menos, é o que ela pensava."

domingo, 3 de setembro de 2017

Trecho de setembro - Falando em alma

Falando em alma: trecho de uma conversa entre a historiadora Sonja Richmond e o Padre John Connor, na mais famosa catedral de Los Angeles, em 2230.

Uma curiosidade: Stephen King já criou um personagem cujo nome usava a sigla JC, aproveitando o simbolismo que essa sigla carrega.



"— Padre, acredita que clones feitos exatamente como cópia de humanos possam desenvolver almas?
— Não, só o Criador pode colocar uma alma num corpo.
— Então condena a criação de androides e de autômatos providos de Inteligência Artificial.
— Não posso dizer que condeno, enquanto forem usados como instrumentos para ajudar humanos. O problema é quando começarem a tomar decisões sozinhos, sem uma consciência.
— Padre, o senhor me confunde. Considere o caso de Eva. É apenas um circuito de suporte à vida que cuidou de mim e do Padre Dundee, tomando decisões que nos fizeram muito bem.
— Entendo sua lógica, Sonja. Mas veja: os circuitos de Eva foram construídos com um objetivo definido. O sistema de suporte à vida existe exclusivamente para manter pessoas vivas. Aquela nave não tem alma e depende de uma programação. Se o programa estivesse mal feito, ela podia ter amputado a perna do Dundee, considerando que isso o manteria vivo. Alguém com alma procuraria outra solução, mesmo uma não programada. E tem outro aspecto: aquela navezinha recebeu muitos aperfeiçoamentos feitos pelo recruta, como você mesma disse. Gosto de pensar que parte da alma dele foi colocada nos programas, o que humaniza um pouco aqueles circuitos. Mas nunca será uma alma.
— Padre, acabou de dizer que uma personalidade humana pode interferir na programação. E se os clones, que são humanos, puderem reprogramar os neurochips? Poderiam simular algo como uma alma?
— Onde quer chegar, Sonja? Que as criaturas do Smith podem se humanizar? Até onde sei, não são humanas. São unidades de plástico tratadas com DNA humano, para assumir aparências. Smith é bastante inteligente, mas nem ele seria capaz de criar um programa para desenvolver personalidade ou almas humanas. Pode ficar tranquila, estamos muito longe de ver isso acontecer, mesmo com toda a tecnologia atual."

Esse é outro trecho de "Quando homens e monstros se tornam deuses". Estou pensando em trocar o título deste livro antes do próximo relançamento, a caminho. Chegamos na fase de criar novas capas. 

O titulo que está na Amazon, logo será retirado. http://bit.ly/Recruta5HomenseDeuses

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Trecho de agosto - Enganando a IA



Esta semana tive a oportunidade de assistir Ghost in the shell, (em português, A vigilante do amanhã), com a Scarlett Johannson, desta vez, morena.
Ela foi citada várias vezes no meu livro "Quando homens e monstros se tornam deuses", um romance de ficção que fala de cinema e clonagem humana.
Existem algumas semelhanças entre este filme e o meu livro.
No filme a protagonista é um cérebro humano colocado num corpo ciborgue, com memórias suprimidas.
No livro, chips com Inteligência Artificial são usados para animar corpos humanos feitos de plástico, depois de alimentados com memórias das pessoas.
Nos dois casos, permanece a questão: como fica a alma humana e os sentimentos das pessoas, quando se usam corpos artificiais? Uma realidade cada vez mais próxima.
Segunda pergunta: robôs e chips podem ser enganados, mesmo quando baseados em Inteligência Artificial? Se considerarmos que IA, em sua origem, é apenas um programa de computador, alimentada por dados, a resposta é SIM: basta usarmos um código de programação mal-intencionado ou alimentá-la com dados falsos. Tanto o livro como o filme mostram isso.
Para ilustrar melhor, o trecho de agosto mostra como a IA foi enganada no meu livro.
Podemos comentar a questão, para quem estiver interessado. Aceito opiniões.

PS. Estou trabalhando no relançamento deste livro, com mais acessibilidade para a cópia impressa. O e-book continua na Amazon.

"Bob continua usando intensivamente o neurochip equipado com Inteligência Artificial e manifesta preocupação:
— Doutor, por que simplesmente não requisitamos nossa carga e a levamos embora?
— Bob, já expliquei que temos pouco capital. Para termos uma carga liberada rapidamente, nós teríamos que ter contratado uma escolta e pago todos os impostos de importação. Do jeito que estamos fazendo, fica muito mais barato.
— Isso não é ilegal, Doutor?
— Paguei a carga à vista. Só falta pegar o que nos pertence e ir embora. Não precisamos preencher uma tonelada de papéis se a carga nos pertence.
— Não vamos preencher papel nenhum, Doutor. Foram abolidos há duzentos anos.
— É só uma expressão humana, Bob. Quero dizer que podemos evitar a burocracia e, se dermos sorte, ainda recebemos o valor do seguro de volta.
— Mas nossa carga está muito bem protegida. Tem até seguranças armados.
— Bob, é aí que preciso de sua ajuda. Você estudou todas as plantas e todas as rotinas de funcionamento deste espaçoporto. Quero que crie um esquema para tirarmos nossa carga daqui, sem chamar a atenção.
— Não é possível, Doutor. Podemos tirar a carga, mas seria preciso remover alguns guardas do caminho. E os paletes flutuadores com certeza chamarão a atenção de outros seguranças.
— Isso é bom, Bob. Então você tem um plano. Execute.
— Não posso. Meus programas são para dar prazer às pessoas. Não posso promover nenhum desconforto.
A reação de Bob deixou Smith desconcertado. Isso de androides domésticos se recusarem a cumprir ordens é um efeito colateral, não planejado, dos programas de personalidade. É uma antiga preocupação daqueles que trabalham em aperfeiçoamento cibernético: até que ponto as máquinas podem ser ensinadas a pensar?
Mas deparar-se com isso numa hora tão crucial é o cúmulo. Entrar numa área protegida de um terminal de cargas, com mais seis androides, todos os sete vestidos de carregadores braçais, para encontrar a resistência de um mero programa, é demais. 
A situação exige medidas drásticas. Um confronto entre a mente humana e um simples programa de computador:
— Bob, tem uma coisa sobre humanos que nunca te contei. Seu programa de AI precisava chegar a um nível adequado para entender. Agora é a hora.
— O que é, Doutor? Algo que não consigo deduzir com minha lógica?
— É uma coisa humana, Bob. Sobre prazer. Você não vai encontrar isso em nenhum banco de dados. Muitos humanos gostam de passar por momentos de desconforto, só para sentir o prazer da recuperação. Não tem nenhum problema em colocar alguns seguranças para dormir, mesmo que haja alguma violência. Eles se sentirão muito felizes ao acordar e ver que estão inteiros.
— Minha lógica mostra algum antagonismo nisso.
— É uma questão de balanceamento. Ser posto para dormir contra a vontade apresenta um mínimo de prazer. Porém, acordar por conta própria e constatar que se está vivo e saudável é extremamente prazeroso. Não te parece lógico?
— Me parece estranho. Mas muita coisa que envolve humanos é estranha. Isso é lógico para mim.
— Qual era seu plano?
— Precisamos criar uma distração que leve os seguranças para o outro lado. Depois pegamos a carga e saímos daqui.
— E onde está a dificuldade em executar?
— Só temos uma nave. Se a usamos para afastá-los, não temos como sair.
— Então vamos pegar outra. Me parece lógico.
— Quem ficaria feliz com isso?
— Eu, você e todos os nossos futuros compradores.
— Tenho que achar outro jeito. Esperem aqui, vou localizar as nossas caixas.
Sem esperar resposta, Bob separou-se da equipe, caminhando rapidamente em direção à parede direita do depósito, seguindo as orientações das plantas que havia estudado. Dois homens armados faziam a segurança ao lado da porta da sala de controle dos paletes. Ao ver Bob se aproximando, os dois posicionaram as mãos sobre as pistolas phaser e um deles perguntou: 
— O que faz aqui, androide?
— Vim lhes proporcionar prazer.
— O quê? Algum dos rapazes te mandou de presente para nós? Chegou muito cedo, ainda estamos de serviço.
— Melhor assim. Terão mais tempo para se sentir felizes quando acordarem.
Os seguranças não entenderam a referência, até que Bob chegou tão perto que parecia querer entrar no meio dos dois. O robô levantou os dois braços, fingindo que faria uma caricia nos rostos dos homens, apenas para puxá-los pelos colarinhos dos uniformes e atirar uma cabeça contra a outra, com força. Ambos caíram nocauteados."

Trecho de "Quando homens e monstros se tornam deuses".  http://bit.ly/Recruta5HomenseDeuses


terça-feira, 4 de julho de 2017

Trecho de julho - Um passeio

Outro trecho de "As cinco esposas de Nathan".
Disponível na Amazon: https://www.amazon.com.br/dp/B07DM9WG98

"A aventura começou na metade do dia seguinte. A Ceifadeira decolou no hangar dos oficiais, da Base Saturno, levando Sue para um passeio junto da esposa, sem destino divulgado.
A Princesa havia dispensado a escolta. Os guerreiros, mesmo a contragosto, não a seguiram, sabendo que seria impossível acompanhar a ex Capitã da Frota Real, se ela não o quisesse. A multidão de repórteres de plantão na Base não sabia disso e uma dúzia de naves civis decolou ao mesmo tempo, esperançosos de conseguir alguma reportagem com as duas Primeiras Damas, provavelmente no Galaxy Shopping, na lua Encéladus.
Assim que se afastou o suficiente dos anéis, os bloqueadores de sinais da Ceifadeira entraram em ação, ocultando a poderosa nave de guerra de todos os sensores em volta. A camuflagem de invisibilidade foi acionada, fazendo com que toda a nave desaparecesse dos olhos biológicos, segundos antes dela mergulhar no hiperespaço, em Warp 10, deixando a órbita de Saturno.
Menos de sete minutos depois, considerando a distância de uma hora-luz e o tempo de desaceleração, a nave real ressurgiu dentro da estratosfera da Terra, sobre o Atlântico Norte, imediatamente mergulhando na direção do Triângulo das Bermudas, um dos locais de confluência das Linhas Ley. Seguiu pela derivação do túnel energético passando sobre as ruínas da antiga cidade de Fortaleza. Protegida dos satélites de identificação e imune ao atrito da reentrada, ainda com os bloqueadores ativados, se desviaram para o sul, em direção a Minas Gerais. Sobre a cidade de Varginha, outro ponto de confluência das Linhas Ley secundárias, a Ceifadeira mergulhou em direção ao solo, sem desacelerar. A cortina mônica de neutrinos garantiu uma viagem tranquila através do planeta, até emergir 12 minutos depois no Mar da China, dentro do piso inferior da enorme e luxuosa caverna usada como moradia pelas esposas de Nathan.
Uma ansiosa Bia já estava esperando no ancoradouro.
- Por que demoraram tanto?"

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Trecho de junho - A bruxa de Saturno

Tenho dois livros em processo de revisão numa Editora e outros dois sendo escritos. Segue um pequeno trecho de um dos novos: "A bruxa de Saturno".

"O mais estranho para mim é ver a incapacidade dos terráqueos, de interagir com outras espécies. Estariam séculos mais evoluídos se trocassem informações com os planetas vizinhos. Ao invés disso, atacam e destroem qualquer ser que não se pareça com eles mesmos, eliminando a possibilidade de qualquer contato com outras culturas. Isso justifica a primeira fase da invasão ter sido a criação de corpos semelhantes aos humanos.
As roupas que sintetizei eram compostas por um par de tênis, meias e camiseta de malha, uma calça de tecido rústico e um blusão do tipo agasalho esportivo. Tudo em cores escuras, quase preto, simulando material velho. A fibra sintética inexplicavelmente me salvou de um raio disparado por uma pistola desintegradora, quando escapei da bruxa na última visita. Foi uma experiência aterradora que não quero repetir nunca mais. Principalmente porque minha especialização em armas diz que seria impossível sobreviver. A menos que tenha sido bruxaria.
Fiz o blusão com capuz para esconder a cicatriz no rosto, visível mesmo depois que deixei crescer os cabelos. Me inspirei em imagens de cabeludos, transmitidas pela Terra, acho que nos anos sessenta. Tenho uma enorme coleção de imagens e sons, armazenados na nave, desde que os primeiros sinais de TV foram lançados ao cosmo. É de onde tiro todas as informações sobre costumes e a cultura local. Faz muito tempo que abduzir terráqueos para obter informações se tornou obsoleto. A época de dissecar corpos para aprender como são formados já se foi. Os corpos que produzimos são até melhores do que os copiados, com uma longevidade muito maior.
Vestido com as roupas sintéticas, tendo o rosto coberto pelo capuz, fechei a nave, tranquei as portas do galpão com os meus cadeados que realmente oferecem segurança e saí caminhando. Ou melhor, coxeando, já que minha perna se recusa a parar de doer.
O galpão fica ao lado dos trilhos de trem, perto da Estação Engenheiro Goulart.
Eu pensava que às quatro horas da madrugada, num frio de dezesseis graus, um vagabundo manco e cabeludo não chamaria a atenção de ninguém. Estava enganado.
Faltava duzentos metros para chegar na Estação, quando dois indivíduos me abordaram repentinamente, saindo de algum lugar que não consegui identificar.
— Ei, tiozinho! Descola um cigarro aí!
Pela voz, devia ser um adolescente. Vi muitas cenas assim nos filmes transmitidos pela TV. Até pensava que seriam apenas entretenimento, pela estupidez da atitude. Abordar um estranho com comandos imperativos, é arriscado para qualquer espécie. Tentei desconsiderar.
— Não vai dar, cara. Não tenho nenhum.
— Qual é, tio, querendo engabelar a gente? Diz o que tem aí. Baseado, pó, uma branquinha. Duvido que não tem nada.
— Olha, menino. Acabei de chegar por aqui e ainda não consegui nada mesmo.
Um deles permaneceu na minha frente, enquanto o segundo caminhou em direção das minhas costas, carregando alguma coisa, mas na escuridão não identifiquei o que era. O primeiro insistiu:
— Sabe o que acontece com vagabundos sem nada? A gente joga álcool e põe fogo. Vai tirando o tênis e o blusão, coroa, não vou sair no prejú.
Quando o sujeito investiu pretendendo arrancar meu agasalho, o segurei pelos pulsos e o girei rapidamente, trocando de lugar, no exato momento em que o segundo desferia um golpe dirigido a mim, com a barra de ferro que estava segurando. A barra atingiu as costelas do próprio amigo, caindo com o corpo dobrado e tentando gritar, mas só conseguindo emitir grunhidos, sem fôlego.
Não gosto de esticar assuntos inúteis. Saquei a pistola e disparei um único tiro no peito do que estava com a barra. Após o flash instantâneo, as cinzas dele se espalharam pelo chão.
O outro devia estar com algumas costelas quebradas. Se retorcia de dor rolando no cascalho, grunhindo palavras desconexas. Tinha os olhos arregalados na minha direção, suponho que por nunca antes ter visto uma desintegração. Foi minha vez de questionar:
— E você, o que tem para mim?
Ainda se retorcendo, o sujeito começou a enfiar as mãos nos bolsos e a tirar objetos que jogava ou deixava cair na minha direção. Um canivete, uma seringa, algo que devia ser um cachimbo e algumas notas de dinheiro.
Peguei o canivete e o dinheiro. O resto do lixo atirei de volta sobre ele, antes de disparar o segundo tiro. O vento se encarregou de espalhar o pó que restou dos dois corpos.
Continuei até a estação que acabara de abrir, entrando junto com os primeiros passageiros. Usei o dinheiro para pagar a passagem.

Não gosto de fazer nada ilegal, ou algo para o qual não tenha sido treinado. A menos que seja condição de sobrevivência."

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O trecho de Maio - Delta Sete

Todos os meses tenho postado um trecho do que estou escrevendo no momento, na minha pagina do Facebook: https://www.facebook.com/pg/clovisp70/posts/
Este mês vou inverter: colocarei o trecho aqui e só vou anunciar no Face.

Comente. Aqui ou lá...
Elas já foram recrutadas. Todas as cinco.

"De volta para a sala de trabalho de Shae, elas ainda comentavam a reunião. Shae era a mais incomodada.
— Não gosto dele. Nem comentou que foram meus seguranças pessoais que destruíram os satélites.
— Seus guarda-costas já voltaram? Quero ir para casa. Os meus saíram com Nathan.
— Não, Bia, mas não se preocupe. Se não chegarem logo, você vai comigo. Minha Fusca-Ovo está numa doca civil. Não tem velocidade de dobra, mas é bem confortável.
— Voar na velocidade da luz é melhor do que nada. E uma hora inteira com você não é tão ruim assim.
Uma Lambda passou correndo pelo corredor, gritando para elas:
— O marido de vocês está nos noticiários. Já viram?
Shae nem precisou procurar um canal. Estava em todos.
Nathan ao lado de uma mulher com uniforme dos fuzileiros, declarando ao universo que aceitou o pedido de casamento dela.
— Bia, de alguma forma eu sabia. Ele não precisava ter ido nessa missão, bastava enviar os coagos. Nathan não foi salvar o planeta, foi lá para buscá-la.
— Mesmo com aquela expressão de cansaço, de quem saiu de uma guerra, ela é linda. Viu os olhos verdes? E o curativo no braço?
— Vamos logo para casa. Ela deve estar esgotada, precisando de um bom banho quente e de cuidados.
— Deixe a cozinha comigo, Shae. Vou processar uma refeição reforçada, cheia de vitaminas. Você cuida dela no banho.
— Já pensou, Bia? Agora, temos uma fuzileira Delta como esposa. Nós três podemos dominar o mundo.
— Nathan já nos deu todo o Sistema Solar, querida. Ele espera que vamos mais longe. E ainda faltam duas."

De "As cinco esposas de Nathan", em fase de revisão.

terça-feira, 4 de abril de 2017

As cinco esposas de Nathan

Parte um — Nathan

Capítulo 1 – Sigma Um


A dor era tão intensa que nem a sentia mais. Exceto quando os buracos do caminho chacoalhavam o carro e balançavam minha perna. Eu continuava concentrado, tentando chegar ao hospital onde esperava resolver aquilo. Nunca imaginei que teria aquele desfecho.
Consegui dirigir até a entrada do Pronto Socorro, onde um manobrista veio me socorrer. Na verdade, ele pretendia apenas pegar o carro e leva-lo para alguma vaga subterrânea, ficando surpreso quando pedi uma cadeira de rodas, das várias que estavam ali. Não devia ser muito comum um motorista solitário fazer aquela troca de veículos.
A dor me deu mais uma fisgada vigorosa, quando usei as mãos para levantar a prótese e puxa-la, junto com a parte da perna que me pertencia, para fora do carro. Assim que sentei na cadeira de rodas, levantei a perna da calça folgada que usava e tirei a prótese, ali mesmo na presença do manobrista, procurando por algum alívio. Meu carro era adaptado. Consegui me abaixar e subir o pedal basculante do acelerador esquerdo, para que não fosse confundido com uma embreagem. Devo ter feito uma expressão de dor considerável, para fazer o rapaz esquecer do carro e me levar para dentro. Segui abraçado ao meu pé postiço. Foi o rapaz quem retirou uma senha e me estacionou na porta da sala de espera, antes de retornar para estacionar o carro.
Notei uma agradável queda repentina na temperatura, quando começou a chover. Mais uma daquelas tradicionais chuvas paulistanas inesperadas, que alagavam tudo, menos as represas, vazias em 2015.
Não sentia a dor se não me mexesse. Foi rápido. Logo o número da minha senha preferencial acendeu no painel. Quando acenei, um atendente contornou o balcão e veio me buscar. Preenchemos a ficha com meus dados pessoais e do meu plano de saúde. Quando perguntado sobre o que estava sentindo, tentei ser o mais explicito possível.
— Estou com um abcesso subcutâneo no joelho direito, inflamado e com muita dor.
Acho que ele entendeu as duas últimas palavras. Tentei ajudar mais um pouco:
— Se for possível, gostaria de ser atendido por um dermatologista.
— Senhor, aqui é um Pronto Socorro. Não temos dermatologistas. Vou encaminhar o senhor para nosso ortopedista de plantão.
Eu não podia esperar nada diferente numa tarde de sábado, chuvosa naquele momento. Completada a ficha, fiz menção de pilotar a cadeira de volta para a sala de espera. O atendente não deixou. Pediu que esperasse, enquanto chamava uma enfermeira para me conduzir até o consultório do ortopedista. Gostei dessa eficiência.
Depois dela empurrar a cadeira, comigo sentado, por dois corredores, chegamos à sala do médico. Um rapaz novo, com pouco mais de 20 anos, cabelos curtos escuros, sentado atrás da tela do computador. Ele só me viu quando a enfermeira já me ajudava a subir na maca. Levantou-se e veio na minha direção, pegando a prancheta oferecida pela moça.
— Senhor Nathanael, o que posso fazer pelo senhor?
Eu pensava que o motivo da minha visita estivesse naquela ficha, que ele mal olhou. Repeti o que eu sabia, com mais alguns detalhes:
— Doutor, é este abcesso no joelho. É o terceiro que tenho em dez anos. Preciso que o senhor faça uma punção e retire a sujeira interna, para que isso desapareça.
— Está mesmo muito inflamado e inchado. A vermelhidão está enorme.
— Sim, Doutor. E dói demais. Está bem no local onde a prótese se apoia. Não consigo andar por causa da dor.
— Imagino. Mas não posso mexer nisso sem antes saber a extensão. Essa inflamação não vai pegar anestesia. Vou pedir um ultrassom e um Raio X, para avaliar.
Eu sempre soube que existem 3 tipos de médicos.
O primeiro tipo eu chamo de "Médico dos filmes". É aquele doutor que vem na sua casa quando você tem uma dor de barriga, consulta a família toda, conversa sobre o futebol do fim de semana, te receita um vidro de xarope e está sempre disponível, bastando um telefonema. Só existe nos filmes.
O segundo tipo é o "Médico do trabalho". O que zela pela boa saúde do trabalho, não das pessoas. Existe dentro das empresas que são obrigadas por lei a manter um Departamento Médico, onde são feitos os exames periódicos. Uma vez por ano, você é obrigado a comparecer ao consultório, para que o médico veja que você foi e te dispense, atestando "apto para o trabalho", apenas porque viu você entrar andando.
Aquele médico que estava me atendendo é do terceiro tipo, um "Médico do Plano de Saúde".  Deve ter sido a única coisa que ele leu na ficha, além do meu nome. Para este tipo, não importa qual a dor do paciente, desde que tenha um bom plano, para cobrir todos os exames e consultas solicitadas. Ele não quer que você morra, mas também não quer que se cure, pois em ambos os casos terá um cliente a menos. Vai ficar pedindo todos os tipos de exames e retornos, eternamente. Penso que a evolução disso será Cartões de Fidelidade, onde cada 10 consultas pagas darão direito ao Doente Preferencial de ganhar uma grátis, desde que todas ocorram dentro de um ano.
Retruquei que não precisava de Raios X, já que meu abcesso era subcutâneo, não chegando até o osso. E questionei se o Ultrassom poderia mostrar o pus que havia por baixo da pele.  Nas vezes anteriores bastou um pequeno corte com o bisturi para drenar o pus, eliminar a causa da inflamação, fazendo o inchaço regredir e em dois dias o corte estava cicatrizado.
O doutor do plano de saúde me ignorou. Voltou para trás do computador, aparentemente para preencher as guias dos exames. Foi neste momento que minha vida mudou radicalmente. Até então não sabia que podia existir um quarto tipo de médicos.
A porta do consultório foi aberta bruscamente, permitindo a entrada de uma doutora com curtíssimos cabelos loiro platinados, quase incolores, vestindo um avental branco e segurando algo que parecia um tubinho de batom. Enquanto fechava a porta, ela falou autoritariamente:
— Pode deixar, Doutor. Esse paciente é meu!
O médico parecia tão surpreso quanto eu:
— Mas quem é a senhora?
— Sou a Cirurgiã Chefe. Eu assumo daqui.
Ela se aproximou do estupefato doutor, como se fosse exibir uma credencial, levantou o braço e borrifou alguma coisa no rosto dele, usando aquilo que parecia um batom. Como se tivesse muita pratica nessa operação, segurou o homem antes que desabasse e o pousou delicadamente sobre a mesa, como se segurasse um boneco de pano. Depois se virou para mim.
— Agora somos só nos dois, querido. Vim eliminar todas as suas dores. O que está te incomodando?
— O que fez com ele?
— Só o coloquei para dormir. É uma anestesia leve. Vai acordar em meia hora e não se lembrará dos últimos minutos. É importante que ninguém saiba da minha presença. Me garante que não vai comentar sobre isto com ninguém?
— Não estou entendendo nada. Eu sou o paciente e o médico é anestesiado por meia hora?
— É o tempo que preciso. Sua ficha diz que você entrou com dores e saiu completamente normal. Qual a dor que vou curar?
— Como posso ter saído se estou aqui?
— É o que está registrado na ficha. Sei que esse nosso primeiro encontro é difícil para nós dois, mas a palavra-chave é tempo. Por favor, não vamos desperdiça-lo. Me diga onde está doendo e depois nossa conversa será mais fácil.
— Devia estar na ficha. É esse abcesso no meu joelho.
Ela se aproximou, permitindo que eu a visse melhor. Quase não consegui. Minha atenção foi desviada para a boca mais perfeita que jamais vi.  Uma obra prima esculpida num rosto, com o tamanho dos lábios, cor, espessura, posição, tudo nas medidas mais perfeitas. Ela não usava batom, provavelmente por saber que qualquer coisa artificial estragaria a perfeição. Senti um desejo irresistível de beijar aquela boca. O que me conteve foi a dor quando ela tocou meu joelho. Gemi, sem saber se era provocado pela dor ou pelo desejo. Ela tirou a mão.
— Desculpe. Há muito tempo não via um abcesso subcutâneo, tão inflamado e inchado. E num local tão apropriado. Vou resolver isso já.
Ela desabotoou o avental, revelando estar usando um collant por baixo, extremamente branco. Parecia ser de um tecido especial, com consistência de pano, mas com brilho de plástico. Levou a mão até um cinto compartimentalizado, como se fosse o BatCinto do Batman. Retirou mais dois tubinhos, semelhantes a tubos de batom.
Borrifou as duas mãos, uma por vez. O spray solidificou imediatamente, mudando de cor, criando uma camada bege gelatinosa. Eu nem sabia que existiam luvas cirúrgicas liquidas.
O segundo tubinho foi borrifado no meu joelho. Imediatamente a dor desapareceu, assim como qualquer sensibilidade. Era como se eu não tivesse o resto da perna, abaixo do joelho. Anestesia local realmente eficiente e instantânea.
Ela guardou aqueles dois tubinhos e pegou dois outros objetos no BatCinto. Me lembraram um Palm, um aparelho precursor dos smartphones. Tinha uma tela retangular, cobrindo praticamente toda a extensão do aparelho, com uns 8 por 10 centímetros. O segundo objeto devia ser o stick, uma canetinha metálica para escrever na tela vítrea do Palm. Errei nas duas suposições.
Ela ligou o aparelho com a tela, escaneando meu joelho.  Mesmo vendo de longe e sem ângulo entendi que era um Raios X portátil. Ela podia ver desde os meus ossos até o tecido que provocava a inflamação. Pegou a canetinha e iniciou a cirurgia. Era um bisturi laser. O raio vermelho penetrou meu músculo até o osso, cortando tudo pelo caminho, manuseado por mãos experientes. Fora o espanto, eu não sentia nada. O corte foi de uns dez centímetros, expondo o osso. Sem uma gota de sangue sequer.
— Doutora, o que houve com o sangue?
— Sou uma médica militar, leciono cirurgias de emergência em campos de batalha. Devo recuperar soldados que praticamente já perderam todo o sangue que podiam. Esta técnica foi desenvolvida para evitar desperdício.
— É isso que significa esse símbolo gravado na sua roupa? Seu posto?
— Sempre observador, querido. Sim, Sigma identifica o Departamento Médico da nossa Força. O número um indica que comando esse departamento. Sou a Sigma Um.
Enquanto falava, ela pegou outro tubo no cinto e borrifou o corte. Foi como um jato de espuma de barbear, que solidificou imediatamente. Com cuidado, a espuma foi retirada junto com os tecidos comprometidos e o pus solidificado. Mais alguns cortes, guiados pelo aparelhinho, outras borrifadas da espuma e tudo parecia limpo e rosado.
A espuma contaminada foi guardada num envelope plástico, para descarte posterior. Pensei que havia acabado quando a doutora pegou algo semelhante a uma embalagem de preservativo e abriu-a com o laser. Dentro havia uma pequena pastilha quadrada de um centímetro de lado por um milímetro de espessura. Com muito cuidado ela colou a pastilha no osso da minha perna, antes de reverter alguma coisa no bisturi. Um raio laser, desta vez na cor verde, foi usado para fechar o corte de dentro para fora, eliminando qualquer cicatriz ou inchaço. Não resisti:
— O que tem nessa pastilha, Doutora?
— O motivo da minha presença aqui. Vai eliminar qualquer dor que você possa ter, por vários anos. Isso é um segredo militar dos mais importantes. Ninguém pode saber que você tem essa pastilha, ou que fui eu quem a colocou. Nunca comente nada disso, ou nossas vidas estarão em perigo. Posso contar com você, meu bem?
— Sim, mas qual o propósito disso?
— Você saberá, no devido tempo. Agora, tire suas roupas.
— O quê?
— Vamos, não perca tempo. Só tenho mais dezoito minutos.
Ela falava sério. Lentamente, comecei a desabotoar minha camisa. É um procedimento normal num checkup, eu pensava. Ela observava, atenta e divertida.
— Nunca imaginei você se recusando a tirar as roupas para mim. Enquanto faz isso, preciso te contar sobre nosso próximo encontro. Você estará trabalhando para a ONU. Estude tudo o que puder sobre táticas de guerra, é importante. E vai conhecer mais uma de nós. É a criatura mais doce e adorável que pode existir, mas para você ela pode ser um pouco, como dizer... intimidadora. Ela é muito sensível. Cuidado para não dizer nada que possa ofendê-la.
— Por que eu ofenderia alguém?
— A aparência dela, para quem não a conhece. Ela é completamente azul, da cabeça aos pés. Os pelos pubianos são azul cobalto, sua cor preferida.
— Isso não existe. Agradeço seus cuidados, Doutora, mas o que está me dizendo não faz o menor sentido. Onde isso vai acontecer?
— Não se preocupe com isso, meu bem. Nós sabemos onde você estará. Outra coisa sobre ela, que você pode estranhar: ela tem quatro braços.
— Agora você vai dizer que é uma alienígena e que veio me abduzir.
— Não, meu amor. Sou tão terráquea quanto você. A pergunta que você não fez é quando será nosso próximo encontro. Esteja preparado, será daqui a 78 anos.
— Você é do futuro!
— Não conte para ninguém. Já que você não pediu, eu peço: quero um beijo!
Sem me dar chance de reação, ela se atirou contra meu pescoço e me roubou um beijo de língua, com aqueles deliciosos lábios perfeitos. Me soltou rapidamente, enquanto eu tentava estabilizar minha pulsação e meus pensamentos. Estava sorrindo, enquanto me encarava:
— Beijo amador. Compreensível, já que você ainda está solteiro.
Eu claramente estava sendo provocado. E claramente estava perdido.
— Doutora, você sempre trata seus pacientes dessa forma?
— Não, amor. Só existe um homem que eu trato assim. O meu marido!
Ela levantou o braço e o tubinho agiu novamente, lançando o anestésico no meu rosto. 
Apaguei.