Os almas negras – Parte 2
Por Clóvis Nicacio
A cama quente e macia
era tudo o que Ailim queria. Sentia-se completamente recuperada,
enquanto o torpor do sono cedia lugar para à realidade. A imagem do quarto
ainda era escurecida e bruxuleante, mas, pelo menos, ela conseguia ver onde
estava. Concordou com a lembrança de alguém dizendo que precisava de algum
tempo para recuperar a visão totalmente. A janela continuava escura. Olhando
mais atentamente, viu a luz trêmula de uma estrela. Não era a visão dela
falhando, era apenas a constatação de que a noite chegou. Uma lamparina de óleo, acesa,
ajudava a formar aquela dança na imagem distante.
A luz tremeluzente trouxe
recordações de um sonho estranho, onde estava numa estrebaria conversando com
Ofan, quando surgiu a visão de um anjo.
Outra
lembrança mais terrena despertou junto da noite: um pouco de comida ajudaria na recuperação. Estava
faminta. Ia se levantar quando foi detida por outra percepção: estava
completamente nua. Cobriu-se rapidamente com a roupa da cama. Olhou em volta, acostumando os olhos a pouca luz da lamparina. As roupas e a armadura de
combate estavam cuidadosamente arrumadas, sobre uma cadeira aos pés da cama.
Por sorte estava sozinha. E podia ver tudo nitidamente, mesmo na penumbra. Até
a espada perdida estava ao lado da cadeira, limpa e polida, junto do arco e da
algibeira.
Com agilidade soltou
o lençol e pegou as roupas, pretendendo vesti-las antes que alguém aparecesse.
A visão restaurada lhe permitiu ver outra coisa diferente no próprio corpo, perceptível
apenas graças à nudez. Mais da metade das cicatrizes obtidas nos treinamentos e
nos combates haviam desaparecido. Devia estar ficando louca. Ou estava morta e
ainda não sabia.
Faltava vestir parte
da armadura quando ouviu passos se aproximando fora do quarto. A audição
apurada continuava, mesmo com a volta da visão. Desta vez, reconheceu aquele
jeito calmo de andar. Ele não estava correndo por um beco. Os passos pararam,
seguidos de batidas na porta.
— Pode entrar, Ofan.
Como se adivinhasse
pensamentos, o amigo leal trazia uma bandeja. O olfato se fez presente,
despertando o paladar. O cheiro do pão quente e do vinho foram aceitos como
perfumes. Nem esperou a bandeja ser colocada na cama, para atacar aquelas iguarias.
Ofan observava calado
e divertido. Esperou até que sobrasse apenas uma taça vazia, desacompanhada por
qualquer migalha de pão.
— Está melhor agora?
Ailim engoliu o
último pedaço e disparou uma saraivada de perguntas, quase sem respirar. Se
portava como uma mulher normal, não uma líder das amazonas.
— Onde estamos? O que
aconteceu? Quem tirou minhas roupas? O que houve com minhas cicatrizes? Como
está a Princesa? E Thael?
— Calma, uma coisa
por vez. Shanya me autorizou a te contar tudo, antes de nos apresentarmos ao
Rei. Para começar, estamos no castelo, em um quarto de hóspedes. Ela conseguiu
retomá-lo, com ajuda dos prisioneiros libertados por Thael e de todos os
súditos. Nem ela esperava que todos se unissem para lutar ao lado deles, quando
ela e o Rei apareceram juntos. Foi um verdadeiro milagre. Nossa pequena tropa
se multiplicou por trinta durante a batalha. Ela e Thael evitaram muitas baixas,
protegendo todos os que ajudavam.
— Onde estão agora?
— Thael não sai do
lado do Rei. Ainda pode haver uorks infiltrados aqui. Shanya está com as
amazonas, vasculhando o castelo, mas mesmo para nós eles são difíceis de
localizar. Não temos como forçá-los a se revelarem.
— Ela ainda não
recebeu o poder?
— Ailim, não entendeu
ainda? Shanya não é a herdeira.
Ela precisava ouvir
as palavras diretamente. Confirmar o que estava pensando, embora fosse uma
coisa difícil de aceitar.
— Preciso ouvir de
você! Se não é ela, quem é? Por favor, me conte tudo, sem esconder mais nada.
— Está bem. Acredite,
a Princesa herdeira é você. Sempre foi. Segundo a história, os uorks aterrorizam este planeta há vários séculos.
Shanya sempre os perseguiu, desde antes de virem para cá. Foi ela quem
descobriu a profecia, há duzentos anos, quando estudava os uorks no reino
deles, procurando fraquezas.
— Espere, isso não é
possível. Ela tem a minha idade, todos a viram crescer neste castelo. Como pode
perseguir uorks há séculos?
— Me deixe continuar.
Com o conhecimento da profecia, ela começou a procurar todos os locais com
regimes monárquicos, onde pudesse ter uma princesa. Foi assim que
chegou ao Reino de Kandor, exatamente há dezoito anos. Mas chegou dois dias atrasada. Os
uorks também faziam a mesma procura e já estavam aqui por, pelo menos, cem
anos, monitorando a família real. A filha recém-nascida do Rei havia sido
sequestrada. Shanya interpretou aquilo como um
sinal. Perseguiu e encontrou os sequestradores conseguindo resgatar a menina,
mas sabia do perigo que todos corriam. Deixou a criança na porta de uma família
simples, num povoado, e assumiu o lugar dela para proteger todos pessoalmente,
em segredo.
— Explique isso. Ela
tomou o lugar de um bebê?
— Vamos confirmar uma coisa antes, Ailim. Olhe para
mim. Queira ver quem eu sou. Depois queira ver o que pareço ser. Não tenha
medo. Faça agora.
Ailim estava se
esforçando para entender, embora a verdade a deixasse cada vez mais assustada.
Ela sempre ouviu do casal que a criou com tanto amor e dedicação, que foi
encontrada dentro de um cesto, na porta, como um presente dos céus. E sempre
disseram que ela parecia ser protegida pelos deuses.
Desejou e conseguiu
ver a aura de paz que envolvia o corpo de Ofan, com aquelas asas de luz nas
costas. Depois, desejou ver a face do amigo e a aura desapareceu.
— Você é um anjo de
verdade?
— Sim. Eu, Shanya e
Thael somos. Grande parte dos uorks também, mas são anjos do mal. Pode chamá-los
de demônios, os que têm almas negras. Nós e eles, podemos assumir a aparência e
a idade de qualquer pessoa. E podemos ocultar nossas almas, até de nós mesmos.
É útil quando precisamos ficar invisíveis, passando despercebidos. Shanya é
mestre nisso. Quando recebi a missão de proteger a princesa, pensei que fosse
ela. Meu erro quase custou a sua vida.
— Você não a
conhecia?
— Conheço aqueles
dois há milênios. Já trabalhamos juntos centenas de vezes. Cada vez que os
encontro, estão com um nome e uma aparência diferentes. Quando escondem as
almas, é impossível reconhecê-los, a menos que queiram. É pior quando se
disfarçam como animais de estimação. Teve uma missão em que Thael era um pônei. E Shanya já foi uma coelhinha branca.
— Por que ela tomou
o lugar da criança?
— Você
precisava ser protegida, Ailim. Você é a herdeira. Se ainda está viva, é
porque Shanya ficou no seu lugar por dezoito anos, sofrendo todos os atentados que
foram dirigidos a você. Já tentaram esfaqueá-la, enforcá-la, foi derrubada de
cavalos, tentaram afogá-la e até cozinhá-la num caldeirão. Ela sempre soube se
safar. O perigo aumentou nos últimos meses, com a proximidade do seu
aniversário, e ela pediu reforços. Thael veio para proteger o Rei e eu para
proteger você.
— O Rei sabe?
— Ainda não. Thael o
está preparando neste momento. Antes seria perigoso para todos. Shanya se
desdobrou para cuidar de você, enquanto mantinha o disfarce, mas estava sozinha.
Não conseguiu impedir os uorks de tomarem o trono e mandarem seu pai para as
masmorras. Isso acabou sendo providencial. Ela pôde sair do castelo e se juntar
as Amazonas, para te proteger mais de perto. Tudo o que acontece sempre tem um
propósito, mesmo que não saibamos qual seja.
— Eu pensando que a
protegia e todo o tempo foi ela que me protegeu. Isso parece um conto de fadas.
— Você não imagina o
quanto ela sofreu ao te ver ferida. Gastamos quase todo nosso arsenal de
energias curativas para te recuperar.
Os três anjos haviam
discutido isso enquanto Ailim dormia. Não sabiam dizer se o poder da Princesa
despertou naturalmente ou se foi induzido pela overdose de energias angelicais.
Talvez ela nem fosse mais humana, depois da reconstrução molecular feita nos
nervos ópticos e na cabeça. Os três usaram técnicas desenvolvidas na época da criação da
raça humana, milênios antes, coisas que a humanidade só terá conhecimento nos
séculos futuros, se conseguir evoluir até chegar lá. Ainda podiam surgir
efeitos colaterais. Concordaram que só o tempo pode dizer quais serão as
consequências, já que tudo sempre tem um propósito.
— Estou pensando. Se
sou a princesa, devo adotar o nome Shanya? Esse é o nome que o Rei escolheu.
— Ailim pode ser um
nome plebeu, mas também é muito bonito. Converse com seu pai. Ele é um bom
homem. A alma dele atesta isso, você verá. Ficará muito feliz em receber a
filha de volta, mesmo que esteja usando outro nome. Mas só podemos contar a
história toda depois de obtermos uma autorização sua.
— Como assim? Você
disse que Thael o estava preparando.
— Superficialmente,
sem detalhes. Somos anjos da guarda. Não podemos interferir mais do que já
fizemos. Combatemos almas negras, mas não podemos alterar a história. Profecias
são mensagens do futuro lançadas no passado. Devem acontecer naturalmente.
Ajudamos que se cumpram, mas quem decide são vocês, os humanos.
Os anjos estavam
apreensivos. Se a princesa deixou de ser humana como todos os demais, por causa
do tratamento, as regras foram quebradas. Mais uma coisa para Shanya resolver com
os superiores dela. O assunto é estritamente angelical. Humanos não precisam
saber disso, não antes da hora certa.
— Então, o que falta
para cumprir esta mensagem do futuro?
— Nos aponte os almas
negras e nos deixe trazer a paz. Segundo a profecia, não poderão se esconder de
você. Nem nós podemos.
— Eles serão mortos?
— Anjos e demônios
não morrem. Se estão materializados, os corpos que ocupam morrem, mas as
essências são transportadas para outro local, onde podem se purificar e voltar
à ativa. No caso de almas negras pode demorar vários séculos, dependendo de
quanto mal praticaram.
— Isso é o que
acontece com almas humanas?
— Sim, o processo é o
mesmo. Devo avisar que se você vê nossas almas, provavelmente verá as humanas
também. As manchas escuras são o mal que as pessoas praticam. Existem manchas
de todos os tamanhos e algumas podem ser bem assustadoras. Você vai precisar de
algum tempo para se acostumar com esse poder. Lembre-se que nem todos os almas
negras que vir foram substituídos por uorks. Muitos são apenas seguidores
enganados, com almas manchadas. Seu pai saberá cuidar destes, se não os
mandarmos para a reciclagem. Manchas menores podem ser cuidadas por aqui
mesmo. As almas demoníacas são negras por completo, sem manchas brancas.
— Acho que não os
verei mais, depois da missão completada. Me refiro a você, Shanya e Thael.
— Pode ser, mas não
tenha tanta certeza. Ainda sou seu anjo da guarda. Com o poder que tem, não
podemos nos esconder de você. Nunca tive uma protegida que pudesse ver como sou
realmente. Tudo isso é novo para nós. E não se trata apenas de limpar o
castelo. Precisamos sanear o reino e talvez todo o planeta. Isso pode demorar
muitos anos.
— Será meu anjo da
guarda por toda minha vida?
—
Provavelmente. É raro ter substituições. Não se preocupe, sempre estarei por
perto para te proteger. E se depender de mim, sua existência será bem longa.
— Acho que entendi.
Minha vida teve uma reviravolta quando entrei para as amazonas. Devo estar
preparada para mais esta. Vamos, quero conhecer meu pai. Mas antes, o que houve
com minhas cicatrizes?
— Eu as curei
enquanto escovava esses cabelos ruivos, depois do banho. Deixei algumas para você nunca
esquecer do seu treinamento. Ainda não estou totalmente carregado com minhas
energias. Quando me recuperar, posso tirar as que ficaram, se quiser.
— Ofan, foi você quem
tirou minhas roupas?
— Desculpe se te
ofendi. Shanya estava muito ocupada e eu não podia confiar em mais ninguém.
— Na próxima vez,
certifique-se antes de que estou acordada. E mais uma coisa. Por favor, nunca
saia do meu lado. Foi horrível me sentir abandonada.
— Perfeitamente,
Princesa completa.
Ofan piscou um olho,
ao usar aquela expressão sem graça. Ailim ficou curiosa para descobrir que tipo
de brincadeiras os anjos podiam fazer.
Os dois saíram do quarto ansiosos com o que o destino lhes reservava, sem saber que
podiam ser a semente para outra profecia perdida em algum lugar:
“Quando a paz nos três universos for alcançada, quatro escolhidos farão
surgir um novo, permitindo a primordiais e protegidos viverem juntos em completa harmonia.”
Por favor, comentem a respeito. Gostariam de ver esta história continuar como uma Série no Wattpad? Quantos capítulos? O que querem saber?
Como o Rei reagiu ao saber da troca de princesas? Ailin é realmente a herdeira citada na profecia, ou foi fabricada pelo tratamento? Como os superiores de Shanya entenderam a interferência? Qual a reação dos almas negras?
É possível desenvolver muita coisa. Opinem, por gentileza.
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