Os almas negras – Parte 1
Por Clóvis
Nicacio
A mulher corria
desesperada pelo beco, tropeçando em tudo o que não via, se chocando contra
paredes e objetos abandonados. Talvez tivessem sido deixados de propósito,
apenas para servirem de obstáculos. A vontade de chorar voltou, mesmo ela não
tendo esse direito. Não apenas por estar com os olhos cobertos por uma dúzia de
bandagens, completamente cega, mas porque guerreiras amazonas não choram, nem
mesmo quando abandonadas. Nem sequer sentia o ferimento na cabeça, como se
aquilo tivesse se curado sozinho.
O conhecido
cheiro dos cavalos indicava que a estrebaria estava perto. Pelo menos, era o
beco certo. Precisava encontrar um meio de selar um e seguir os outros
guerreiros, antes que o barulho soasse longe demais. Era difícil acreditar que
a Princesa partiu sem ao menos se despedir. Mesmo sem poder ver, ela ainda
poderia ser útil de alguma forma.
Ouviu passos rápidos
se aproximando do beco. As duas últimas semanas na completa escuridão haviam
aprimorado os outros sentidos. Não apenas o olfato estava mais aguçado,
guiando-a até os cavalos, mas também a audição que a fez perceber a partida da
Princesa e dos guerreiros. O tato auxiliava no controle da lança, usada como um
cajado, evitando que se arrebentasse contra tudo, embora não impedisse os tropeços e trombadas.
Reconheceu
ter chegado na estrebaria
quando ouviu a respiração familiar dos cavalos. Se concentrou para lembrar onde
estavam as selas, quando os passos do perseguidor no beco se aceleraram. Não
havia tempo para preparar nenhuma fuga. Os cavalos teriam que esperar.
Sem o dom da
visão, lutar com a lança seria inadequado. Havia perdido a espada durante a batalha,
quando foi ferida. Quebrou a arma no meio, atirando-a contra um joelho. Duas
barras menores eram mais fáceis de manusear. Prestando atenção ao barulho dos
passos, se posicionou onde imaginou ser a lateral da porta e aguardou a chegada
do perseguidor. Teria uma chance se ouvisse a respiração do inimigo. Nunca mais
seria uma presa fácil para qualquer uork.
Quando o oponente
se aproximou o suficiente, ela desferiu um golpe de cima para baixo, usando a
ponta cega da lança. Enquanto ele se defendia, projetou a outra metade, a da ponta
afiada, como se fosse uma espada, tentando atingi-lo diretamente no peito. O
agressor devia conhecer as técnicas de luta das amazonas, pois conseguiu se
defender dos dois golpes e ainda arrancou a arma pontiaguda da mão dela. Ailim
ainda teria outra chance se transformasse a meia lança restante em uma nova
arma. A saída seria uma luta corpo-a-corpo, negando ao perseguidor a
oportunidade de usar a lança roubada. Tinha que assumir o risco. Se jogou para
frente, tentando golpear as pernas do oponente, apenas para se chocar contra um
corpo enorme e ser detida por dois braços fortes. Aturdida pela falta de
agressividade do inimigo, ouviu o homem dizer:
— Ailim, pare!
Sou eu, Ofan.
— Ofan? Graças
aos deuses. Me ajude.
A guerreira
aceitou o abraço, retribuindo-o, procurando algum conforto no peitoral gelado
da armadura do homem. Ofan era um dos dois outros guerreiros, formadores da
escolta pessoal da Princesa, junto dela mesma. Rapidamente se recuperou,
tentando esconder o momento de fraqueza:
— Ofan, temos que
ir! Rápido! Precisamos alcançá-la. Posso escutá-los se distanciando cada vez
mais. Não temos tempo a perder.
— Sim, Ailim, nós
vamos ao encontro dela. Mas não será agora.
— O que está
dizendo?
— A Princesa
Shanya conversou comigo antes de partir e me deu novas ordens. Eu estava te
procurando. Não te achei na estalagem e deduzi que este fosse o único lugar
para onde você iria. Devo cuidar de você até se recuperar por completo. Depois
iremos encontrá-la no castelo.
— No castelo?
Então, ela encontrou um meio de recuperar o trono?
— Sim, mas ainda
temos algum tempo até que toda a operação esteja pronta. A menos que aconteça
algum milagre.
— Precisamos
ajudá-la! Posso me recuperar enquanto cavalgamos.
Estavam no
povoado mais próximo do castelo, onde haviam chegado há duas semanas. Os
inimigos que os emboscaram foram derrotados pelo grupo de guerreiros seguidores
da Princesa, com a ajuda dos dois novos protetores e das Amazonas. Mas a líder
das mulheres guerreiras foi uma das baixas, gravemente ferida na cabeça.
— Não, Ailim, é
muito perigoso. O caminho está infestado de uorks. Temos que esperar até que o
poder da Princesa se manifeste, para nos guiar.
— Mais um motivo
para protegê-la! Não tente me afastar dela, Ofan.
Amazonas têm uma
percepção mais aguçada do que outros guerreiros, obtida no treinamento para
entender até os cavalos, com os quais formam uma ligação profunda, cada um
dependendo do outro. Ailim detectou uma ansiedade no coração do amigo e
companheiro de batalha.
— Ofan, você está
me escondendo algo. Posso sentir. Por que a Princesa conversou com você e nem
se despediu de mim, se ainda sou a líder das Amazonas?
Ofan estava
desconfortável por esconder o que realmente acontecia, mas fora alertado por
Shanya para revelar a verdade só no momento adequado. Ele e Thael haviam se
juntado à tropa há apenas um mês, e gozavam da total confiança da Princesa,
tendo sido imediatamente incorporados na restrita escolta particular. Ambos
sabiam dos comentários circulando entre os outros guerreiros, estranhando toda aquela
camaradagem, por desconhecerem a amizade dos três desde longa data. Somente
guerreiros com muitas vitórias em batalha conquistavam o direito de cavalgar ao
lado da Princesa, junto da líder das amazonas.
— Ela sabe que
você precisa de pelo menos mais um dia. Se não soubesse, não seria a princesa.
E não se despediu por absoluta falta de tempo. As coisas estão acontecendo
muito rápido.
— Que coisas? Só
estou afastada por duas semanas.
— Vamos conversar
depois. No momento tem algo mais urgente. Me deixe tirar essas bandagens dos
seus olhos.
— Está louco,
Ofan? Não quero ficar cega para sempre! Preciso destas bandagens. Você sabe que
o martelo do uork afetou meus nervos ópticos.
— Claro que sei.
E hoje concordei com Shanya quando ela mencionou que esse ferimento pode ter um
propósito.
Algumas coisas
não devem ser ditas até que chegue o momento certo. A tensão entre os dois
antecipava esse momento.
Ailim, Shanya,
Ofan e Thael estavam no grupo de vanguarda que chegou ao povoado, quando foram
emboscados e isolados por um grupo de uorks. No ápice da batalha, Ailim sofreu
um golpe lateral na cabeça, aplicado pelo martelo de guerra de um uork. A luta
terminou para Shanya, no instante em que ela viu Ailim caída no chão, com o
elmo rachado e a cabeça toda ensanguentada. Ofan e Thael, até então empenhados
em proteger Shanya, praticamente encerraram a batalha sozinhos, finalizando
todo o pelotão uork daquele lado do povoado, enquanto a Princesa socorria
Ailim. A amazona não podia ver, mas desde que foi ferida os três se revezavam
tentando curá-la. E Ofan se culpava por estar protegendo a pessoa errada.
— Você está
misterioso demais. Do que está falando? Faz dois anos que eu a acompanho para
todos os lugares, desde que o trono caiu, e ela nunca me confidenciou nada.
— Vou te contar o
que sei enquanto tiro as bandagens. Por favor, não me impeça.
Delicadamente o
guerreiro soltou a ponta da primeira tira de tecido, enrolando-a na mão. Falava
vagarosamente.
— Shanya partiu
para ajudar Thael. Ele foi feito prisioneiro hoje. Neste momento está a caminho
das masmorras do castelo.
Ailim se agitou.
— O quê? Ouviu o
que disse? Com Thael preso e nós dois aqui, a Princesa está sozinha! Ela
precisa de nós!
— Ailim, pode me
ouvir? Shanya sabe o que está fazendo. Ela sempre soube. E nunca estará
sozinha. Tem sessenta dos melhores guerreiros ao lado dela, tem as fiéis Amazonas
que você treinou e todo o reino a segue. A missão dela é recuperar o trono.
Assim como a de Thael é proteger o Rei, neste momento aprisionado nas masmorras
do castelo. A prisão de Thael foi proposital, para ele poder se infiltrar.
— Isso é loucura.
Esse é o plano? Ele será levado desarmado para uma masmorra recheada de
guardas. O que pode fazer lá?
— Thael não
precisa levar armas. Ele já é uma. Quando libertar o Rei, Shanya e os nossos o
estarão esperando. Os três vão retomar o trono. Nós chegaremos depois.
— E quanto a nós,
não faremos nada enquanto nossos amigos loucos resolvem tudo?
— Minha missão é
outra. O que você sabe da profecia?
— Ora, sei tudo o
que todos os kandorianos sabem.
— Eu vim das
montanhas, das terras altas. Sei que existe a profecia, mas só ouvi trechos.
Não sou kandoriano. Pode recitá-la para mim?
— “Quando estiver completa, a princesa
conhecerá o poder que revelará os ocultos e trará a paz definitiva.”
— Agora entendo o
que Shanya quis dizer. Tudo faz sentido.
— Ofan, pare de
mistérios. O que faz sentido?
— O que é que
torna os uorks tão perigosos, além da maldade e da ganância?
— Qualquer
criança sabe. A capacidade deles de se misturarem com as pessoas, sem que
ninguém perceba. Se infiltram em qualquer lugar.
— Exato, mas eles
têm um ponto fraco. Possuem almas negras.
— Isso não ajuda
muito.
— Explica a
profecia. Eles são os ocultos. A paz definitiva será alcançada quando puderem
ser identificados. Esse é o poder que será revelado para a princesa.
— Ainda falta
decifrar o que é a princesa completa. Não me parece que falte alguma coisa em
Shanya.
— Isso faz parte
do que ela me explicou hoje, antes de partir. Se os uorks tivessem conseguido decifrar
da maneira certa, não teriam mantido o Rei vivo na masmorra. Justifica a
urgência de enviar Thael para resgatá-lo. Com a morte do Rei, a herdeira se
tornaria Rainha e a profecia nunca se cumpriria. Uma Princesa completa precisa
de um reino, de um Rei e do direito de ser a sucessora. Pelas leis de Kandor, a
herdeira ganha esse direito com a maioridade.
— Então é
verdade. Shanya faz aniversário esta semana.
— Quase isso.
Os dedos de Ofan
chegaram nos cabelos dela, mantidos sedosos mesmo com a presença dos tecidos
por duas semanas, bem escovados a cada troca de curativos. A última bandagem
foi retirada com delicadeza redobrada, como se ele estivesse cuidando de uma
joia preciosa.
— Abra os olhos,
Ailim. Considere isto como o meu presente.
Novamente, a percepção
de Ailim dizia que alguma coisa além do normal estava acontecendo. Uma sensação
parecida como quando o calor dos primeiros raios do sol surge para quebrar o
frio da madrugada. Ela soltou o pedaço de lança que ainda segurava, e levou as
duas mãos ao rosto, tocando de leve as mãos de Ofan. O contato teve o poder de
tranquilizá-la. Inexplicavelmente, ela confiava no amigo.
— Presente? Acho
que você enlouqueceu. Presente de que?
Ofan se afastou alguns passos, lhe dando
espaço. Sempre atento.
— De aniversário.
Hoje você completa dezoito anos. Shanya me contou.
A surpresa fez
com que a guerreira abrisse os olhos instintivamente. As pupilas verdes se contraíram,
assustadas. No início, a pouca luz da estrebaria não a incomodou muito, mas,
mesmo assim, cobriu os olhos com as mãos. Vagarosamente se atreveu a observar
onde estava, trocando os outros sentidos pela visão. Via tudo borrado, aos
poucos conseguindo separar algumas imagens enfumaçadas. Na direção da porta,
reconheceu a luz do sol do lado de fora, como uma mancha mais clara do que todo
o resto. Nas paredes, conseguiu discernir vagamente os contornos das selas,
arreios e ferramentas pendurados. Os cavalos nas cocheiras eram vultos enormes.
Seriam assustadores se ela não os conhecesse tão bem.
Antes de
completar um giro, outra percepção lhe chamou a atenção. Havia uma segunda
fonte de luz, na direção oposta da porta, tão brilhante quanto o sol. Ela se
virou para ver o que era.
Desde que chegou,
Ofan sempre foi considerado por ela e por todas as amazonas, como um homem
muito atraente. Um guerreiro montanhês alto, forte, musculoso, com olhos que
transmitem uma calma interior contagiante. Neste momento ela não via nada
disso. Uma aura brilhante cercava todo o corpo dele, como se o amigo estivesse
coberto de pequenas chamas brancas, projetando-se através da armadura. A visão
fantasmagórica transmitia uma sensação de paz inexplicável. A parte mais
incrível eram as enormes asas luminescentes, dobradas, nas costas do guerreiro.
O choque daquela
visão inesperada, o esforço da fuga pelo beco, o princípio de luta e a fraqueza
das últimas semanas se aliaram, se transformando num cansaço irresistível.
Ailim sentiu os olhos se fechando antes de desmaiar.
Ofan a segurou
antes que caísse e a aconchegou carinhosamente contra o peito. Não gostava de
ter provocado a inconsciência nela, mas era necessário para completar a cura.
Levantou-a no colo como se ela não tivesse peso, falando baixinho:
— Você nunca mais
cairá, Princesa. Não permitirei.
Deu alguns passos
na direção da porta, enquanto transformava as asas de energia pura em matéria,
para abri-las num salto ágil e alçou voo, desaparecendo no céu com a protegida
desacordada nos braços.
Continua
na parte 2.
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