O lado de fora do
Natal
Por Clóvis Nicacio
As grades estavam frias, como o
vento que vinha lá de dentro. Não devia ser assim. Aquele lugar colorido e
barulhento devia ser quente, por ter tanta alegria e tantas pessoas.
Soltou as mãos do ferro, esfregando uma na outra para aquecê-las. Se tivesse
bolsos nas roupas, seria a hora de usá-los. Os outros meninos que entravam a pé
estavam com as mãos nos bolsos, quando não usavam luvas e eram guiados pelas
mãos quentes dos adultos.
Continuou a caminhada ao lado da grade que cerca o Shopping, em direção da
entrada de pedestres. Se o guarda não estivesse prestando atenção, talvez
conseguisse entrar. É sábado. Logo será
noite. Se o que ouviu for verdade, falta pouco para ele chegar.
Não conseguiu entrar no ano anterior. Um guarda o deteve quando estava
passando pelo portão, e o obrigou a voltar. Esse ano seria diferente. Estava
mais atento, cresceu alguns centímetros e corria mais ligeiro.
Ainda não havia se aproximado do portão quando ouviu o rangido, seguido do
latido agudo e familiar. A carroça se tornou visível depois de virar a curva do
caminho.
— Bolassete, você também veio ver o Papai Noel?
— Quem me dera, Neguinho. Num convidaram, nem eu e nem o que fais
niversário.
— Num é festa de aniversário, Bolassete. Escutei que o Papai Noel chega
hoje, voando naquela carroça dele.
O negro sexagenário de cabeça branca gostava de conversar com as crianças,
tanto quanto gostava de conversar com os cachorros. Todos mostravam a mesma
inocência, embora respondessem de forma diferente. Se aproximou do menino,
baixando até o chão os varais da carroça que puxava, aproveitando o encontro
inesperado para descansar alguns minutos.
— Intão ocê num sabe que o Natal é o niversário de Nosso Senhor?
— Minha mãe já contou uma história assim. Mas não acredito que o Papai Noel
é Nosso Senhor.
— Num é. Esse véio barrigudo de barba branca só serve pra fazê as pessoa
gastá dinhero. Nosso Senhor eles fala que é o menino dentro daquela caxinha de
pau, junto das vaca e dos pastor. É nada. Nosso Senhor mora dentro dos coração
das pessoa, quando acha um lugar.
— Até no meu e no seu, Bolassete?
— No seu pode sê. Deve tê bastante espaço. A Bolinha num é gente, mas deve
tê um coração bem grande. No meu não, tá cheio de muita sem-vergonhice que já
fiz.
— E porque a Bolinha está amarrada, em cima da carroça?
— Os guarda queria amarrá ela na cerca, do lado de fora, enquanto eu pegava
o papelão. Ela ia ficá chorando dimais. Falei que cuidava dela. Acabaro
dexando ela entrá, dispois de amarrada dentro da carroça. Pode sortá ela, mais
vai ficá pulando nocê.
O menino magricela, negro como um graveto de carvão, usando apenas chinelos
de dedo, um calção e uma camiseta estampada com a fotografia do último
candidato a prefeito, o derrotado, fez a volta na carroça e desamarrou a
cordinha que prendia a cadela. Ganhou uma lambida nas mãos como sinal de
agradecimento, seguida de alguns latidos em tom alegre e imediatamente a
cadelinha saltou para o chão, se embrenhando entre as perninhas raquíticas do
menino. Os risos do garoto vieram sem convite, espontaneamente.
— Bolinha, para com isso, vai me derrubar.
— Eu te avisei, Neguinho. Ela gosta d’ocê. Qué vim comigo, até o ferro veio
discarregá essa carga? Pode continuá brincando com a Bolinha até lá.
— Mas e o Papai Noel?
— Num vai chegá agora. Depois vamo lá no campinho, onde dá pra ver o
helicópto chegando. Sem nenhum aperto.
— Mas o Papai Noel não vem naquela carroça dele?
— Não, aquilo num é carroça e nem charrete. É só de infeite. Ele deve vortá
todos os dia, até sábado qui vem. Pra vê ele, é mió ocê vim num dia de semana.
O velho de cabeça branca se agachou e pegou as traves, e com um baque, as
trouxe de volta para o ponto de equilíbrio. Rompeu a inércia com um puxão,
pondo a carroça em movimento.
Alguns terrenos baldios, em bairros considerados
zona rural, ainda são usados como depósito de sucata, onde se negocia materiais
recicláveis. Outros terrenos são improvisados como campos de futebol. Muitos
Shopping Centers, principalmente os situados nas margens de grandes rodovias,
são ilhas de luxo cercadas por mares de miséria, propagando um aterramento
lento em nome do progresso. Ferros velhos e campinhos são saudosas imagens em
extinção.
— Tá certo. Vou com você e a Bolinha então. Está ficando muito frio.
Com muitos anos de prática, controlando a respiração, o velho ainda
conseguia conversar, mesmo puxando a carroça pesada, acompanhado de perto pelo
menino e pela cadelinha saltitante.
— Sua mãe dexô ocê saí sem agasalho?
— Estava quente de manhã, não foi preciso. Sabia que passei de ano,
Bolassete? Minha mãe disse que vai me comprar uma chuteira.
— Parabéns procê. A Soraia num sabe o que fazê pra ti agradá. Sempre foi
muito isforçada. Ela tá acabando com a vida dela, pra cuidá da sua.
O velho Pedro Bolassete, carregava o apelido desde que tinha cabelos negros
como a bola mais escura do bilhar. Caminhava pelas ruas do bairro, recolhendo
papelão e materiais descartados desde o tempo das carroças com tração animal.
Conhecia todos os moradores, gente e cachorros, pelos nomes.
— Escutei uma vizinha lá nos barracos chamando ela de mulher da vida.
— Num liga. É coisa de inveja. Ocê é pequeno prá entender isso. Mulher da
vida pode sê um monte de coisa. Pensa na sua mãe como uma guerrera, que fais
qualquer coisa para criar um filho.
— Ela está lá na Pensão da Dona Maricota. Disse que vai trabalhar a noite
toda, para poder comprar minha chuteira. Eu falei para ela que não precisa, mas
ela não me escuta.
— Eu sei como é, Neguinho. Mais num fica indo lá não, aquela pensão tá cheia
de gente que num tem Nosso Senhor no coração. Num é lugar pra um menino igual
ocê.
— Bolassete, tem umas meninas que moram lá, num quartinho separado dos
outros. Como que é ruim para meninos e não é ruim para meninas?
— Ocê é muito esperto. Quantos anos tem?
— Onze.
— Lá num é bão prá ninguém, nem menina nem menino. Cotinha cria aquelas
menina prá vendê. Hoje, no Natal e no Ano Novo, ela vê as que fais treze ano e
vende pra quem tem o coração cheio de mardade. Tá cheio de home que paga muito
dinhero prá fica com menina novinha.
— Eles compram elas e levam embora, para morar com eles?
— Não. Eles compra, usa prá fazê sem-vergonhice e deixa as pobre largada.
Cotinha pega as menina di vorta e põe pra trabalhar pra ela. Por isso que a pensão tá sempre cheia de moça
nova. As mais véia só fica lá, porque num sabe fazê outra coisa. Tomara que a
Soraia consiga algum dinhero.
— Isso sempre acontece no Natal, Bolassete? Então o Natal é uma coisa ruim.
— Não, Neguinho. Num é culpa do Natal. O niversário de Nosso Senhor era prá
sê uma festa das mais bonita. Quem estraga é os home, que só pensa em dinhero e
esquece das pessoa.
— Vou falar para minha mãe não ir mais lá.
— Se pudesse ela não ia mesmo. Só vai pra podê cuidá d’ocê. Só tem um jeito
de ajudar, Neguinho. Presta atenção na escola. Aprende a lê, escrevê e fazê
conta. Depois arranja um emprego. Num é fácil, mais num tem otro jeito. Si dá
certo, ocê tira a Soraia de lá.
— Tem hora que a escola é chata, Bolassete. Jogar bola no campinho com a
turma é muito mais legal.
— Eu sei. É por isso que tô aqui, puxando carroça. Nunca gostei de estudá.
Nem sei falá direito, igual ocê. Larguei estudo, o barraco onde morava, e tudo,
pra ficá brincando na rua, jogando pião, correndo atrais de pipa. Tinha um
monte de amigo. Até puxei cadeia pra livrá a cara de um deles. Sumiro todos. Os
que ficaro me davam pinga, cigarro, drogas. Levei chute, pisão, empurrão, dormí
no chão duro, passei fome. Tirei pão duro da boca de cachorro, pra podê comê.
Tive mãe dizendo que a escola era minha salvação, quando era muleque igual ocê,
mas nunca escutei ela.
— Como você sabe que a escola podia te dar uma vida melhor?
— Num sei. Tive preguiça de descobrí. Eu me achava isperto, que os otro
podia me dá tudo o que queria. Me dero, essa carroça e a Bolinha. Outro dia vi
um cara do tempo da escola, um que morava na mesma favela que eu. Chegô lá no
shopin num carrão todo brilhante. Tem mulher e tem filhos com ropa da moda. Me
escondi, mesmo sabendo que não tinha jeito dele me reconhecê.
— Você ficou com inveja dele, Bolassete?
— Não, Neguinho. Fiquei com orgulho dele. Nois dois tinha a mesma chance,
mais ele enfrentô e foi pra cima. O que doeu foi a raiva que tive por sê tão
burro e tão covarde. Naquele dia me escondí na cachaça até num vê mais nada.
Um clima gelado se intrometeu na conversa, como se o ar frio do início da
noite quisesse isolá-los. Bolassete tentou quebrá-lo.
— Neguinho, posso te pedí uma coisa?
— Claro. Nós somos amigos, certo?
— Tô sentindo as perna fraquejando, nesses dias. A carroça tá ficando cada
dia mais pesada.
— Quer que eu puxe um pouco? Ou que empurre?
O velho riu, pela primeira vez naquele dia, exibindo os dentes falhos.
— Não, menino. Ocê num tem força. A carroça é que ia puxá ocê. É otra coisa.
— Então fala. Claro que ajudo.
— A Bolinha gosta d’ocê. Se arguma coisa me acontecê, cuida dela pra mim?
— Claro, Bolassete. Gosto muito dela. Que tipo de coisa pode acontecer?
— Sei lá. Posso ficá doente.
Era uma forma delicada de dizer que podia morrer. Qualquer doença nas
condições em que vivia seria uma viagem sem volta.
— Só dá um jeito de me avisar e venho buscar a Bolinha. Pode ficar
tranquilo.
— Ocê é um bom menino, Neguinho. Soraia te educô direitinho. Olha o ferro
veio ali. Vô lá vende o papelão. Tamo perto da sua casa, né?
— O barraco fica na segunda rua daquele lado. É perto da pensão. – O menino
apontou para um trecho onde se podia avistar torres de alta tensão, na frente
do sol em retirada. – Mas não vou agora. Quero ver o helicóptero passando por
cima do campinho.
— Leva um papelão pra sentá. A Bolinha vai querê ir junto. Depois que
descarregá eu vô lá.
O menino não queria se afastar, como se quisesse esticar ao máximo aquele
momento raro de conversa com alguém mais adulto.
— Bolassete, aonde você vai passar o Natal, sábado que vem?
— Eu? Dexa vê. Tive convite do Major, do Capitão, da Estrela, da Sucupira e
de mais uns doze que não lembro o nome. Fora a Bolinha.
— Não estou falando dos cachorros do bairro, mas de gente.
— Peraí, tirando a cachorrada, fica mais complicado.
— Você está me gozando, Bolassete. Minha mãe vai trabalhar na Pensão. Não
quero ficar com a turma da favela ou tentando invadir o Shopping. Posso vir
ficar com você?
— Tá falando sério, Neguinho?
— Claro, acho que vai ser legal. Do campinho dá para ver os fogos do
Shopping?
— Dá pra vê fogos do bairro intero. Mas preciso passá na Pensão e avisá a
Soraia. Você só vem se ela dexá, combinado?
— Acho que ela pode arranjar uma garrafa de refrigerante para a gente.
— Para ocê, né? Já tenho minha cachacinha guardada. Nessa urtima semana
antes do Natal, costumo ganhá um ou dois panetone. Ainda tem gente com Nosso
Senhor no coração. Vamo fazê uma festa lá no campinho, naquela parte onde tem
grama. Dá até prá rolá no chão, no meio dos cachorro.
— Uau, adoro panetone. Teve um ano que minha mãe trouxe um para casa, mas
precisei dividir com um monte de gente. Esse vai ser só para nós?
— Claro que não, seu guloso. Também tem a Bolinha e os outros cachorro. Os
bichinho precisa comê. Vô vê se arranjo um pouco de pão ou de ração prá eles.
No Natal, enquanto os dono vão pra farra, quase todos os cachorro do bairro vem
ficá comigo. Ano passado consegui uns pedaço de osso no açougue. Seu Manuel
perguntô se era pra minha sopa.
— Tem jeito de convidar o aniversariante?
— Num precisa. Ele vai vê seu coração de longe e vem por conta dele mesmo.
Ocê vai percebê quando os cachorro ficá alegre.
— Já conversou com Nosso Senhor, Bolassete?
— Ele já tento falá comigo, mais eu num entendi. Achei que era a cachaça.
— Se falar comigo, eu te conto tudo.
— Quer sabê? Amanhã descarrego essa carroça. Vamo lá pro campinho.
— Oba. Bolassete, esse vai ser o melhor Natal da minha vida. Vem Bolinha!
Crédito da foto: By Bianca C. L. (Own work) [CC BY-SA 4.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons