Propinópolis e a ausência de desburocratização.
Tudo começou há quase doze anos, quando comprei um carro usado. Um
Corsa GSI 16 válvulas. Excelente carrinho: bonito, econômico,
potente e completo. Mesmo tendo sido fabricado em 1995 já veio de
fábrica com trio elétrico, ar condicionado, freios ABS e todo o
conforto de um carro importado.
Opa, me empolguei com o carro e esqueci de me apresentar: meu nome é
Cléber e o sobrenome deixo com vocês: pode ser Idiota, Toupeira,
Burro, Vítima ou algum outro que seja do seu agrado. E outra coisa
que estava esquecendo de dizer: vivo em Propinópolis, um lugar onde
a moeda local se chama Propina. Alias, isto é o motivo do meu
sobrenome estar em aberto. Vivo me esquecendo de que pagando com
Propinas qualquer coisa pode ser feita nesta terra abençoada por
Deus e explorada pelos homens. Qualquer coisa exceto uma: o certo.
Tenho este defeito desde criança: sempre tento fazer o certo, embora
nem sempre dê certo.
Voltando a falar de carros, há dois anos comprei outro, mas não me
desfiz do Corsinha. O deixei em casa como segundo carro. Nos últimos
meses apareceram algumas multas do carrinho, em meu nome mas que não
foram cometidas por mim. Concluí que chegou a hora de transferir a
propriedade do veículo.
Foi neste ponto que começou esta novela.
Por ser um carro com quase doze anos em minha posse, nem preciso
dizer que não sei mais onde está o DUT, “Documento Único de
Transferência”, papel obrigatório para desfazer a propriedade de
um veículo. Como um cidadão normal residente em Propinópolis, eu
deveria ter procurado um Despachante profissional, pago algumas
propinas e tudo estaria resolvido.
Mas aí não seria eu, o senhor Certinho. Decidi fazer tudo por conta
própria.
Primeiro, vi que meu Banco na parte de serviços eletrônicos, tem
uma opção para “Segunda via de DUT”. Só pagar a taxa e pronto.
Muito fácil, foi o que fiz. Em abril. Paguei a taxa e fiquei
esperando o documento, que pensei seria entregue pelo Correio.
Em novembro, inconformado pela demora, acessei novamente a opção no
Banco. Imprimi o recibo do pagamento e só então percebi a
observação que estava escrita: “Após o pagamento, dirija-se
ao Órgão de Transito munido deste recibo e dos documentos exigidos
por lei para obter seu documento.”
Que distração. Falha minha.
Em dezembro, aproveitando alguns dias de férias, fui ao Órgão de
Transito, Unidade Aricanduva, munido do recibo e dos documentos do
carro. Tinha só umas trezentas pessoas no local, divididas numas dez
filas. Depois da primeira fila, aquela que tinha apenas dez pessoas
para pedirem informações, fui orientado para seguir para a fila da
“Triagem de Veículos”, onde havia outras trinta pessoas. Depois
de quarenta minutos, uma atendente sem muita vontade me atendeu:
O senhor, em que posso ajudar?
Vim retirar esta segunda via do DUT, tenho este recibo e os
documentos do carro.
- Mas o senhor já abriu o processo?
- Que processo?
- Tem que trazer cópias autenticadas do seu CPF, do RG, copia de um
comprovante de endereço, decalques do motor e do chassi e tem que
passar pela vistoria.
Ela pegou um papel e fez uma lista dos documentos.
- Só isso?
- Só, mas a vistoria só funciona das 9 até as 17.
Depois de alguns dias fui a um Cartório para autenticar os
documentos pedidos. Tirei o decalque do chassi, mas não encontrei o
numero do motor em lugar nenhum. Num Corsa GSI não tem espaço para
manusear nem uma agulha ao lado do motor, muito menos para colocar a
mão e achar os números gravados em relevo.
Cheio de boa vontade decidi levar o carro para a vistoria, esperando
que alguém me orientasse como tirar o decalque do motor. Cheguei no
local da vistoria na terça-feira seguinte, por volta das 16 horas, e
entrei numa fila com aproximadamente uns vinte carros, se arrastando
em baixo de um sol de 35 graus. Depois de mais cinquenta minutos e
meio litro de suor, chegou a minha vez:
- Vim fazer uma vistoria, tenho todos os documentos que foram
pedidos.
- Onde está a planilha?
- Que planilha?
- Tem que ter a planilha para a vistoria.
- Mas a menina lá da triagem não falou nada de planilha.
- Moço, sem planilha não tem como fazer vistoria. Volta lá que ela
abre o processo.
- Outra coisa, não consegui tirar o decalque do motor. Alguém pode
me orientar como faz?
- O decalque tem que vir junto com a planilha.
- Tá bom, mas como é que tira?
- Fala lá na triagem quando ela abrir o processo.
E o atendente encerrou a conversa, indo atender outro cliente. Sem
alternativa, saí do local da vistoria e voltei para o local do
atendimento. Outra fila de trinta pessoas, mais quarenta minutos e
cheguei novamente numa atendente:
- Vim abrir um processo para vistoria. Tenho todos os documentos
desta lista.
A menina conferiu a lista.
- Cadê o decalque do motor?
- Isto que eu queria perguntar. É um Corsa GSI, não tem como tirar
decalque.
- Tem que ter o decalque, ou não posso abrir o processo.
- Mas como se tira decalque desse carro?
- Moço, tem que ter o decalque.
- E quando não tem, existe outro jeito? Alguma taxa, um documento de
responsabilidade, como pode ser resolvido?
- Tem gente que traz laudo fotográfico. Aceitamos no lugar do
decalque.
- Que bom. E como consigo um? É a vistoria que faz?
- Tem que trazer pronto.
- Mas quem faz?
- Olha moço, lá fora no estacionamento tem um pessoal que trabalha
com decalques. Pergunta lá. Quando tiver todos os documentos volta
aqui para abrir o processo. A vistoria fecha as 17.
Aquela conversa estava encerrada naquele momento. Fui para o
estacionamento, procurar o pessoal do decalque. Vi um rapaz com um
colete laranja, com a palavra “Decalque” nas costas.
- Boa tarde. Você trabalha aqui no Órgão de Transito?
- Não, somos particulares. Ajudamos a tirar decalques e outros
serviços. O senhor precisa de um?
- Sim, de um Corsa GSI.
- Ih, moço, Corsa GSI é impossível tirar decalque.
- Já percebi E como é que se faz?
- Só laudo fotográfico. Podemos fazer. Custa oitenta moedas.
- Demora?
- Não, sai na hora. Temos uma oficina aqui ao lado.
Na oficina, demorou quase uma hora para o rapaz preparar tudo,
localizando o numero do motor, passando giz para destacar o baixo
relevo, fotografando por vários ângulos e fazendo um laudo completo
de identificação do carro. Depois me orientou a seguir para o
escritório, para fazer o pagamento e retirar o laudo.
Mais meia hora de espera, até receber o laudo com uma observação
inesperada: “Reprovado”.
O atendente do escritório questionou:
- O senhor está comprando este carro agora?
- Não, já está comigo tem uns doze anos.
- O senhor trocou o motor?
- Não, mas o motor foi retificado duas vezes. Se algum mecânico
trocou alguma parte, não me falou.
- É que tem divergência entre o numero gravado no motor e o numero
registrado no Órgão de Transito.
- Não tenho mais contato com os mecânicos que trabalharam no carro.
Tem algum jeito de regularizar isto?
- Lá na Triagem tem dois documentos para isso: um “Termo de
Responsabilidade” e um “Pedido de Regularização”.
E assim, munido do laudo que era o ultimo documento que me faltava,
voltei ao Guichê da Triagem. Desta vez a fila só tinha cinco
pessoas, demorou só uns dez minutos.
- Oi, voltei. Trouxe toda a documentação para abrir um processo de
segunda via do DUT, inclusive um laudo fotográfico.
A atendente conferiu tudo novamente.
- Mas este laudo diz que tem divergência no numero do motor. Não
posso abrir o processo assim.
- É, eles me falaram. Como posso regularizar?
- O senhor precisa do “Termo de Responsabilidade de Troca de
Motor” e de um “Pedido de Regularização de Troca de
Motor”. Eu tenho os dois formulários aqui. Vou pegar.
Poucos minutos depois a menina voltou, com duas vias de cada
formulário. Já comecei a ficar relaxado, esperando pelo fim da
novela.
- É só preencher para dar entrada no processo?
- Sim, preencha em duas vias. Depois precisa reconhecer firma em cada
uma das primeiras vias.
- Então não tem como entrar com isso hoje?
- Hoje? De jeito nenhum, a vistoria já fechou. E nem pode ser aqui.
O senhor precisa regularizar o motor antes. Tem que ir lá na Unidade
Armênia, motor é só lá. Quando estiver regularizado volta aqui
para fazer a vistoria.
Sem discutir mais, voltei para casa. No dia seguinte, bem cedo
procurei o cartório para reconhecer firma nas duas primeiras vias de
cada documento. Eram onze horas da manha quando estava com os dois
documentos prontos. Voltei para casa, esperei o almoço e segui para
mais uma etapa.
O Órgão de Transito da Armênia, fica num trecho usado como eixo de
acesso para transporte de cargas. Entupido de caminhões, ônibus e
todo tipo de transporte de cargas. Poucos acessos e nenhum
estacionamento próximo. Demorei quase duas horas para sair de casa,
atravessar o transito, passar em frente ao local duas vezes, indo e
voltando, e conseguir estacionar quase dois quilômetros distante. É
incrível, temos um Órgão de Transito para quem NÃO tem carro,
devido a dificuldade de acesso. Só indo a pé mesmo.
Eram quase três da tarde quando entrei na fila onde já haviam
outras trinta pessoas e trinta minutos depois cheguei no guichê da
Triagem. Já estou ficando expert.
- Vim dar entrada num processo para regularizar motor.
- Trouxe a documentação?
- Sim, está toda aqui, inclusive os que precisam de firma
reconhecida.
A atendente conferiu tudo.
- Parece tudo certo. Tome, esta é sua senha, aguarde a chamada num
daqueles painéis
Segui para o lado que ela indicou, um trecho em que havia várias
fileiras de bancos, com cerca de vinte pessoas sentadas, atentas ao
painel. Em frente das cadeiras e sob o painel, um enorme balcão em
L, com muitos atendentes sentados em frente a computadores. Metade
fazendo atendimentos e metade pareciam observarem o painel, talvez
para saber qual seria sorteado para o atendimento seguinte. Enquanto
aguardava meu numero acender observei que existia um aparelhinho na
frente de cada atendente. Quando encerrava um atendimento, alguns
funcionários pediam para o atendido apertar um botão. Outros
funcionários aguardavam o atendido se retirar e ele mesmo apertava o
botão. Achei estranho aquilo, fiquei imaginando qual seria o
critério para apertar botões.
Eram três e cinquenta quando meu numero acendeu. Segui para o
atendente indicado no painel. Informei minha intenção e entreguei a
documentação para uma nova conferência. Os papeis já estavam
gastos de tanto serem conferidos. Enquanto examinava, ele comentava:
- Certo, regularização de motor. Firmas reconhecidas. Laudo
fotográfico. Decalque do chassi. Onde está a xerox da Declaração
de Perda do DUT?
- Como é? Que xerox?
- Tem que mandar uma cópia junto da original. O senhor não quer que
o processo fique parado por causa de uma xerox, não é?
- O senhor não tem como fazer essa cópia aí?
- Aqui, não. Tem uma sala de cópias lá fora, o senhor pode ir lá,
copiar esse documento e voltar aqui, nem precisa entrar de novo na
fila ou pegar outra senha. É só falar direto comigo. Toma, leva
todos os seus papéis, não podem ficar aqui.
- Bom, nesse caso, vou lá e já volto.
Pelo menos não tinha fila na sala de cópias, só três pessoas. Em
cinco minutos já estava de volta com a cópia.
O atendente estava falando com outra pessoa quando voltei.
Educadamente esperei atrás da pessoa, sem interromper. Só ouvi uma
frase, que o atendente disse:
- Vamos lá em cima, que eu resolvo isso...
Os dois se levantaram e saíram do grande salão. Sentei na cadeira
aguardando pela volta do rapaz. Observei o aparelhinho que tinha me
deixado curioso. Tinha quatro botões, para avaliação do
atendimento: Ótimo, Bom, Regular, Ruim. O botão de Ótimo era o que
ficava mais perto do atendente, aquele que eu vi alguns pressionarem
para fazer uma auto avaliação.
Vinte minutos depois comecei a ficar preocupado. Observei em volta e
muitas mesas estavam vazias, embora ainda houvessem pessoas sentadas
aguardando serem atendidas. Uma senhora atrás de mim interpelou uma
mulher que parecia ser uma supervisora dos atendentes:
- Onde posso fazer um pagamento de taxa? Não é aqui?
- É aqui mesmo, mas o rapaz que cobra precisou sair. Deixa ver se
acho outro de plantão, o expediente da maioria terminou ás quatro.
Fiquei arrepiado. Será que aquele que estava me atendendo tinha ido
embora? Esperei mais vinte vinte minutos e chamei a supervisora.
Falei que meu atendimento tinha sido interrompido por causa de uma
xerox e que o rapaz sumiu. Pedi para ressuscitar minha senha e me por
de volta na fila. Meio a contragosto ela concordou. Me disse para
voltar a aguardar nas cadeiras, pelo numero no painel novamente.
Demorou mais dez minutos até meu numero voltar a acender. Fui
direcionado para o vizinho da mesa em que estivera antes. O novo
atendente já sabia que eu estava irritado.
Conferiu toda a documentação novamente, juntou os papeis em duas
pilhas e as grampeou, comentando:
- Agora está tudo certo.
Pensei que ele usaria o computador para abrir o processo, mas tudo o
que fez foi estender as duas pilhas de papeis de volta para mim.
Falou:
- É só levar no Protocolo, lá fora. Vão carimbar a segunda via.
- Só isso?
- Sim, aqui é só isso.
- Não preciso fazer a avaliação?
Ele ligou alguma coisa e uma luz no aparelhinho se acendeu. Levei meu
dedo para o botão Ruim, mas no ultimo momento apertei o Regular. Me
levantei e segui para fora, procurando o Protocolo, sem nem olhar
para trás.
Tinha mais umas quatro pessoas na fila do novo guichê, os
sobreviventes daquele dia. Ou atrasados
Entreguei os documentos para um senhor que estava atrás do balcão,
com uma expressão enfadonha. Ele conferiu tudo sem dizer uma
palavra. Quando pareceu satisfeito, separou as duas segundas vias dos
últimos documentos que me foram pedidos, grampeou as duas juntas, e
bateu um carimbo nas pilhas de papeis. Me devolveu as duas folhas
grampeadas e carimbadas. Me disse três palavras:
- Cinco dias úteis.
- Devo voltar aqui mesmo neste guichê, para saber do andamento?
Ele respondeu mantendo o mesmo tom de voz, monotônica:
- Cinco dias úteis.
Ainda tentei argumentar:
- Semana que vem é Natal. Quais dias devo contar?
Desta vez o tom de voz mudou, ficou mais incisivo:
- Cinco dias úteis!
Fiz meia volta e fui embora nesse dia. Não tinha botão de avaliação
nesse guichê. Fiquei com a impressão de que um Carimbador
profissional não poderia mesmo conhecer mais do que três palavras.
Voltei no sábado depois do Natal, quando pelas minhas contas fizeram
seis dias úteis. Fui direto no Protocolo, sem filas, onde uma
atendente morena falava ao celular.
Dois minutos depois ela veio me atender. Mostrei minhas vias
protocoladas.
- Quero saber o andamento deste processo.
- Já tem vinte e cinco dias?
- Como assim? Quando protocolei aqui me foi dito cinco dias.
- O normal são vinte e cinco dias. Deixa ver no sistema.
Cinco minutos depois ela voltou, trazendo uma folha com algumas
linhas impressas alem das minhas protocoladas. Na folha impressa
tinha o numero do protocolo seguido da expressão: “Em andamento”.
Pelo menos ela conhecia mais do que três palavras. Ainda me
informou:
- Se quiser mais detalhes, pergunta lá dentro, pega uma senha na
Triagem.
E voltou a atenção para o telefone celular.
Como estava com algum tempo, arrisquei entrar. Na triagem a fila era
de só duas pessoas. Peguei a senha e fui novamente esperar o chamado
embaixo do painel eletrônico. Só demorou quinze minutos para que
fosse atendido, já que o local estava vazio.
- Quero saber o andamento deste processo.
- Aguarde um minuto, vou verificar.
O atendente se levantou e saiu do salão. Voltou quase dez minutos
depois.
- Mandamos uma carta de averiguação para a fábrica do seu carro.
Tem que aguardar a resposta. Normalmente demora de quinze a vinte
dias.
- A partir de que dia? Do dia do protocolo?
- É sim. Liga para um destes números, lá para o meio de janeiro.
E anotou dois números de telefone no papel que a outra atendente
tinha me dado, com a frase “Em andamento”.
- Quer dizer que eu posso acompanhar o processo por telefone?
- Sim, é só informar o numero do protocolo, nestes telefones que
informei.
- Posso fazer a avaliação?
O atendente parecia bem humorado. Liberou o equipamento. Apertei
imediatamente o botão Regular. Ainda me virei para ele e comentei:
- Não estou satisfeito. Se eu soubesse desses telefones antes, nem
teria vindo aqui hoje.
Minha novela ainda não terminou. Estou aguardando o prazo para ligar
e consultar de novo. Psicologicamente preparado para outra dose de
informação, liberada a conta-gotas.
Talvez até a metade do ano eu posso contar como foi a solução.
O pior de tudo é ficar pensando que se eu tivesse contratado um
Despachante logo no início, já estaria com tudo resolvido, apenas
com o custo de algumas Propinas.
Eu não conseguiria realizar essa façanha, e muito menos guardar e registrar todos esses formulários, documentos, processos e as planilhas.
ResponderExcluirAdmiro sua perseverança e paciência!